Bússolas
"Livro é tão bom que deveria ser elogio. Tipo: 'você é tão livro!'"
(frase de camiseta)
Na noite em que pisei numa livraria como autora pela primeira vez, estava em pânico. Fui apresentada a algumas pessoas do meio literário carioca, sorri, fingi naturalidade, me achei gorda e temi pelo desastre.
Sem poder fugir do compromisso que eu mesma havia assumido, vaguei pelo espaço a folhear livros sem vê-los. A ansiedade me comia viva.
Decidi respirar um pouco do lado de fora, foi quando me dei conta que a vitrine esquerda da Blooks estava tomada pelos livros de Lygia Bojunga. Todos eles em nova e padronizada edição.
Senti alegria, alívio e certeza de que Lygia me salvaria de achar que nada daquilo ali me dizia respeito. Porque foi Lygia quem me reconduziu ao mundo quando eu pensava que não pertencia a ele.
Foi com “A Bolsa Amarela” que descobri que outras meninas podiam nascer em famílias grandes e se sentirem deslocadas no tempo-espaço. Raquel me traduziu, virou meu alter ego. Eu me li naquela história bem contada. Alguém me entendia, enfim.
Depois de me esconder e de me achar em todos os bolsos daquela bolsa, veio “Os Colegas”, tão representativo do que as amizades me trazem: diversidade, segurança, comunhão e aventura.
Assim, devorei quase tudo da autora que, na década de 1970, se chamava Lygia Bojunga Nunes. O Nunes se foi, ficou a Lygia, uma figura maternal para a garota órfã.
Na Juventude, outra Lygia entrou em cena, a Fagundes Telles. Tornou-se leitura de cabeceira rapidamente. Era a voz feminina independente, firme, intelectual, sensual e sombria que eu precisava para dar vazão aos meus delírios de universitária emancipada e melancólica.
Consumi Lygia aos borbotões. Todos os romances, os melhores contos. Lygia mestra, Lygia paulistana da gema com tudo o que isso tem de bom. Lygia como eu gostaria de ser: erudita sem ser hermética.
Apesar de gostar muito de Clarice e me envaidecer por me acharem fisicamente parecida com ela, nunca quis escrever como Lispector. “A vida íntima de Laura” elevou meus padrões estéticos-literários desde muito cedo (li o livro aos nove anos), mas não penso em criar textos doloridos, excruciantes e existencialistas. Quero ser menos abstrata, mais mundana. Não tenho vocação para esfinge ou mestre dos magos e suas charadas.
Meu texto precisa ser claro, claríssimo, porque rolam uns pontos negros na alma que não devem ser instigados, compreende? Ah, Marfa me compreende com seu cacoete de passar a vida a pedir compreensão. Sempre me identifiquei com ela, a personagem doidivanas e viciada de “Verão no Aquário”.
"O autor só escreve metade do livro. Da outra metade, deve ocupar-se o leitor".
(Joseph Conrad)
Não sei o porquê de, entre todas as drogas, calhou de ser logo a escrita. Não parece coisa de pisciana existir sem um elixir potente e aniquilador da realidade cruel (o drama, ponto de partida).
O texto, ao contrário, é cara lavada e corpo presente. Ainda que as palavras digam não, escrever é cru e concreto. Lygia Fagundes Telles é um bom exemplo do que digo. Narrativas concisas, elegantes e sem artifícios estilísticos. Aos meus olhos, Lygia nunca se revestiu de escritora atormentada pela própria criação.
Seria uma vitória trilhar minha prosa de forma lúdica, tal qual Bojunga-mãe; e sinistra, na medida de Fagundes Telles-mentora. Bússolas.
Sempre muito bom!
ResponderExcluirMaria Heloísa Soares
ResponderExcluirLygia Querida Fagundes Telles. Li e reli várias vezes As Meninas. Um livro marcante na minha juventude. Clarice às vezes me cansa com tanta abstração e caraminholas na cabeça. Sou uma pessoa prática, mas identifiquei-me muito com a personagem de A Paixão Segundo GH. na época vivia um amor-tripé, que mantinha estável, mas que não me deixava andar. Bojunga conheci na pós, quando adentrei o universo da teoria da literatura infantil. Obrigada por me transportar tão suavemente à épocas tão importantes da minha vida. Sucesso!
Adriana Capellozza
Muito bom texto, e a foto super combina: vc e livros. Minhas referências literárias de uns anos pra cá têm sido leituras filosóficas de estudo sobre o Sagrado e o Profano na vida.
ResponderExcluirCynthia Chayb
Que texto bonito. E como você almeja: sem charadas.
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