O dilema da maçã


Queria me inspirar para escrever coisas bonitas. Esperei mais de uma hora por uma ideia lírica, mas ela não veio. 

Pensei na animação da Branca de Neve e me lembrei daquele aplicativo que envelhece as pessoas. Eu fiquei a própria horrenda bruxa má que entrega a maçã envenenada. 

O pensamento saltou para as flores, as abelhas e a desmesurada delicadeza dos japoneses. 

Daí parei na foto que acabara de receber da sobrinha-neta Eva Maria, a primeira menina na família após 19 anos. Senti palpitação. A afloração desmesurada de algo que reconheço como amor à primeira vista. Ela me fará pecar pelo excesso de chamegos, pode anotar.

Percebi o quanto de sentimento represado e reprimido estava em mim e tive medo. As últimas experiências com meninas foram tanto traumatizantes como perturbadoras. Experiencio um paradoxo: me entregar à paixão ou me manter reticente?

Não é fácil escrever sobre essas questões. Contudo, melhor expor para esquecer ou, ao menos, para apascentar. Gosto muito desse verbo surrupiado pelos evangélicos. Entretanto, assim como acerca da bandeira nacional, apropriada pelo Brasil de B., acho fundamental promover a desapropriação. O verbo e tampouco a flâmula são propriedades exclusivas de grupos neopentecostais, tá okey?

Rodeando, rodeando… Pare. Vá direito ao ponto. O lance é que eu me vejo amaldiçoada. Parecia não ser para mim o prazer de amar uma menina de todo o coração. Não é novidade para ninguém que sempre almejei, também, uma filha. Há 13 anos, fui presenteada com a possibilidade de ser madrinha da garotinha do melhor amigo do marido. Não deu certo. A amizade acabou e o apadrinhamento afetivo se tornou um compromisso de papel esquecido na gaveta.

Anos depois e carregando uma cicatriz no ventrículo esquerdo, fui convidada para ser madrinha de outra menina. Reneguei por um tempo, mas, animada com a nova chance de conviver com estrógenos e lacinhos, aceitei. Para quê? Para arranhar o ventrículo direito. 

Deixei criar heras, espinhos e bolor nos sentimentos maternais femininos, porém exigi uma fêmea em casa na hora da escolha do bicho de estimação. Veio Frida, mulher esquiva, árida. Que coisa!

Logo em seguida, a melhor notícia: teríamos uma sobrinha na família do marido. Ah, que alvoroço. A guria foi muito celebrada. Ofertamos toda a nossa experiência de maternidade e de paternidade aos recém-papais. Tiramos nosso coração da cavidade torácica e o ofertamos, numa bandeja de afeto, aos parentes amados. Recebemos incompreensão e desunião. Punhalada fatal. 

Desalmei. A maldição se confirmara. De fato, havia espetado o dedo no fuso envenenado: jamais amará outra menina de novo, sua otária.

E eis que agora chega Eva Maria, do meu lado do clã. A moleca cravo e canela bagunça o coreto e me põe na roda-viva a girar, debater, moer sensações complexas. Vou ou não vou? Dou ou não dou? Lanço-me com rede de proteção ou não? Chamo o jardineiro fiel para extirpar as ervas daninhas dos traumas ou me recolho à convivência sem atropelos de uma afeição morna?

Perguntas que precisam ser respondidas por quem as escreveu, evidentemente. Todavia, aceito sugestões dos analistas da sessão em grupo.


Trilha deste post:

"A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa aprender a começar de novo
É como tocar o mesmo violão
E nele compor uma nova canção
Que fale de amor
Que faça chorar
Que toque mais forte
Esse meu coração
Ah! Coração!
Se apronta pra recomeçar
Ah! Coração!
Esquece esse medo de amar de novo..."
(Começo, Meio e Fim by Roupa Nova)

Comentários

  1. Bom-dia, tivó!

    Adoramos seu texto! Pode me amar sem medo. Estou todinha aqui para ser amada.

    Beijocas,

    Eva Maria

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  2. Amar, sempre. Mesmo que o sentimento seja mal recebido. Dói tê-lo rechaçado, mas quem tem amor pra dar, talvez sofra mais ao senti-lo represado (com o perdão da rima)...

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