Sem legendas
Pouso o queixo na gaveta aberta. Aspiro um cheiro inconfundível de ontem: mistura de pós, cremes e couro cabeludo. Um cheiro familiar, minha mãe ou minha madrinha, odor de velhice. Recuo assustada, aquela é a minha gaveta. Hoje sou mais antiga do que ontem, não tem escapatória. Os sonhos me ajudam a escrever e a recontar a história. Num deles estou em Paris, jovem com cabelos chanel. No outro, vasculho o sótão da velha casa da fazenda... Quando sonho me sinto mais viva na manhã. Convulsionada de ideias forçando passagem em carta psicografada. Talvez tenha sido a lua negra. A praça que é de guerra transformada em praia numa noite de domingo. Não sei se faço sentido, mas o onírico não necessita de legendas. Só quero reter comigo o céu negro, o barulhinho do pandeiro ali perto e a textura suave dos meus filhos que estavam de volta à minha barriga, apertando minhas costelas num incômodo gravado na memória de toda mulher que carrega a vida dentro de si. ...