Marruá de corpo e alma




Até onde eu sabia, Minas Gerais era o meu estado de espírito. Os escritores mineiros me guiando pelas mãos. Guimarães Rosa, Drummond e Adélia Prado: faróis. Quintana entrou no páreo, mas as montanhas de Minas jamais saíram do primeiro lugar em meu coração viageiro. 

Todas as férias ziguezagueando pelas curvas sensuais de Minas são melhores do que o serpenteio anterior. E então chegou Manoel e suas argilas de Mato Grosso do Sul. Os poemas, antes da região, me fizeram adentrar por aquela vivência no oco do mundo. 

Recordo que meu marido pensou, há muitos anos, em concorrer a uma vaga de professor de Física na Universidade Federal de Mato Grosso e eu lhe disse: vá, mas não me chame! A ideia de viver a mais de dois mil quilômetros do mar me deixava transtornada. 


Hoje penso que sou mais de montanha que de mar. Sou mais de terra batida que de ondas. Continuo amando os oceanos porque jamais vou entendê-los ou me sentir à vontade dentro deles. Respeito. Admiro e necessito de seus mistérios. Entretanto, a minha alma pertence, definitivamente, ao interior. Sou de dentro. Sombras do mato me alumbram. Agora que conheci as bandas poetizadas por Manoel de Barros, me dei por vencida. 


Que lugar é o Mato Grosso do Sul! O solo fazendeiro salpicado de gado. Verdura a perder de vista. A cada olhar uma descoberta: árvores intensas, bichos selvagens. Existe naquela imensidão uma parte que não se doma com cabresto ou arado. Talvez nas grutas inundadas de azuis e ausência de fundo resida a alma de um Brasil intocado pelas brutalidades. Daí a cordialidade do povo pantaneiro. A fartura de olás e sorrisos. 


Já cruzei muito sertão, rio e cidade nesse país, mas não havia encontrado, ainda, uma quantidade de chão tão aprazível em toda a sua largura. Tudo ali é bonito demais. E não falo só da cidade-show de Bonito, que tem nome que lhe veste como neopreno. Porém dos arredores, das redondezas, dos baldios terrenos onde brotam incessantes tons de verde mais verdes do que os outros, numa competição saudável em busca da perfeição natural. 

E na mesma toada são os bichos de lá: cada um mais plumado que o outro; cada pelo mais vistoso do que o outro; cada liberdade mais ansiada do que a outra. Mato Grosso do Sul, que deveria se chamar Estado Pantanal, apesar das extensas fazendas e dos novilhos nelores, é terra-natal de boi Marruá, de porcos peludos e de onças furtivas. Todos sem lenço, sem documento e o mais importante: sem donos. 


Entrar no Pantanal é pisar literalmente no freio: a rodovia é vigiada por radares onipresentes e o carro não passa de 80 Km por hora. Melhor assim, pois vamos desacelerando da caótica vida urbana para entender o tempo pantaneiro. Um tempo dividido em mar de poeira e mar de água. Dualidade majestosa que faz a mesma terra ser campo de cogumelos num dia e lagoa de jacarés no outro. 

Animais e gleba sem lei e sem patrão. Os latifundiários bem que tentam, mas contra a força da natureza pantaneira não tem cerca eletrificada que lhe dobre a espinha. A onça mata a vaca, o jacaré cruza o pasto, a água invade a planície e deixa apenas o capão. O jeito é ser flexível e paciente. Esperar a hora de ser peixe e a hora de ser jaburu. 


Voar, nadar, caminhar, rastejar. Os seres viventes do Pantanal são versáteis. A evolução das espécies pode ser presenciada dia a dia, num rincão onde a insensatez é permanente. Você tropeça em tatus, iguanas gigantes e caimans estáticos. As araras azuis lhe dão rasantes; os bugios lhe encaram da segurança das densas copas; os veados correm da focagem noturna; os mosquitos lhe fazem de peneira. As capivaras lhe dão bom-dia e os martins-pescadores lhe asseguram as cores da manhã.

Não dá para resumir a densidade dos rios ou das emoções vividas. O Pantanal é onde o Brasil é mais África. Me perdi e me achei. 



Comentários

  1. Muito boa descrição do que é o pantanal! Esses dias me peguei com saudades das caminhadas por lá, no meio da bicharada selvagem toda. Seria bom poder voltar sempre para uma fazenda daquelas. Poucas vezes uma viagem me deixou com esse tipo de sentimento. Realmente um lugar especial.

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  2. Lindo texto, Lu! Só pra variar. Mudando de assunto, estes dias estou empacada em uma música só, que me fez lembrar do seu tom poético, sempre. Acho que você conhece, A noite, cantada pela Tiê.

    Bjs!

    Ana Claudia

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  3. Conheci este lugar tão especial através de suas palavras querida Luciana, sua escrita é precisa, poética, deliciosa de acompanhar e nelas viajar. Valeu! Está simplesmente maravilhoso!

    Cumprimentos,

    Guti.

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  4. Você com suas referências eruditas, eu com minhas referências pop. O "marruá" do título me fez lembrar da novela Pantanal e da mulher-onça vivida por Cristiana Oliveira que se chamava Juma Marruá.

    Tem um programa no Canal Futura que se chama "Revelando os Brasis". Esse programa poderia muito bem ter sido criado, idealizado, escrito e apresentado por você. A cada viagem sua você me revela um cantinho novo desse Brasilzão imenso.

    http://www.revelandoosbrasis.com.br


    Primo Valdeir.

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  5. Essa passagem do mar pro interior é você se conhecendo ou você mudando?

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  6. Bela crônica. Só ao se referir a "de Mato Grosso do Sul" já se percebe que você entendeu estas paragens. Ainda não consigo me distanciar e falar "daquelas paragens". Penso que nunca vou conseguir. Agora sou aquele serrado que ainda sente falta do morro.

    Ângela Sollberger

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