Menina obediente

ô mundo tão desigual...tudo é tão desigual
de um lado esse carnaval, de outro a fome total
Torquato Neto e Gilberto Gil

Folhear revistas femininas é divertido. Às vezes você encontra textos interessantes e concursos culturais desafiadores. Uma vez ganhei uma semana free em um dos SPAs mais caros do Brasil ao participar de um deles com um texto que pretendia saber: “o que é boa forma pra você?”.

Nestes dias, tive que passar um tarde inteira no salão de beleza. Gente, como essas modelos e celebridades aguentam tamanha provação? Não há cérebro que não derreta com o barulho dos secadores, o cheiro de ácido fórmico e a futilidade reinante. Uma das moças que trabalhavam no lugar traduziu muito bem o lema de sua vida: “você está tão séria hoje, dona Lígia. Não pensa muito não, não vale a pena. Eu não fico pensando”.

Eu olhei pra ela pensei: “é isso aí”, enquanto minha cabeleira volumosa mudava de cor e de formato. Pois é, sou mulher e não posso renegar a minha condição de ser da espécie que cultiva a vaidade. Revistas femininas e salão de beleza: almas gêmeas de um mundo feminino que eu freqüento a passeio.

Li umas cinco “Caras” e umas duas “Claudias” durante a minha transformação. Numa das “Claudias” havia uma crônica da Danuza Leão até instigante que instigava as mulheres a “ser o que são”, revelando ódios, invejas e sentimentos desagradáveis em relação as suas amigas, familiares, chefes e maridos.

Na teoria, tudo é beautiful. Na prática, eu sei bem onde isso para. Eu sou a prova viva de que é melhor manter a boca fechada para não entrar mosquito. Mamãe sempre disse: “quem fala demais dá bom-dia a cavalo”. E eu já dei muitos boas tardes a equinos por aí. Ninguém, de fato, quer saber o que você realmente pensa. Iniciativa que pode gerar conseqüências arrasadoras. Ser franco não combina com o inconsciente coletivo brasileiro voltado para o prazer, para a conciliação e para os tapinhas nas costas.

Agora mesmo estou enfrentando um pepino danado: respondi um email de um amigo com opiniões consideradas “agressivas” por ele. Ele me deu o pé na bunda, disse que não queria mais saber de mim. E aí, Danuza, o que você me diz? Como é que essa mulher tem coragem de escrever que a gente deve soltar nossos lagartos numa revista feminina?

Ela tem noção de que tipo de mentalidade está lendo o que ela escreve? Arriscadíssimo. Podemos ter hordas de mulheres assassinadas por mandar os maridos à merda. Sem contar as que vão perder seus empregos nos salões de beleza por resolverem começar a pensar de um dia para o outro.

Por isso a morte de Zilda Arns me deixou tão fula da vida. Pô, quando um brasileiro é realmente do bem, faz além do que é preciso para tornar a vida da nação mais digna, é honesta, transparente e forte, tem de morrer assim? Quem deu autorização? Quem disse que Deus é brasileiro? Eu também soube que ela era muito gentil, o que não é o meu caso, o que torna sua morte brutal ainda mais estarrecedora.

E o estudante de medicina paupérrimo dizimado pelo próprio destino? Não conseguiu escapar das armadilhas dos que nascem na miséria: perdeu a vida jovem e de forma violenta. Parece conto de horror do Allan Poe tipo “Não venda a sua cabeça ao diabo”. E ele não tinha vendido, pelo contrário: estava a um passo de não virar estatística...

Enquanto isso, figuras como Sarney, Jader Barbalho (o caralho!) Paulo Maluf, Zé Pequenos, Beira-mares, Arrudas, Rorizes, idiotas de alto escalão, patricinhas e mauricinhos indolentes, apresentadoras de TV ridículas, modelos anoréxicas, a classe média egocêntrica e a elite estúpida morrem de velhice, na paz da mediocridade...Revoltante!

Pronto, falei, escrevi, desabafei. Desfiei meu fel contra a comunidade tupiniquim, devidamente avalizada por Danuza, esnobezinha, Leão. Sou uma menina obediente, oras bolas.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

"O espião que me amava"

Kintsugi(s)

Perfis comportamentais