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Fechar e abrir novas gestalts

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Agora a mudança está premente. Começou o entra e sai de corretores de imóveis em busca de um orçamento para alugar o apê. A visita de empresas ou cooperativas transportadoras de cacarecos também. E como os temos. É num momento assim que vemos o tanto que acumulamos. “São muitas miudezas para embalar, vamos orçar três dias”. Ó céus, o museu do artesanato vai cobrar um preço alto pelo deslocamento do seu acervo. Eu que tô de férias chata resolvendo, evidentemente, chateações, não posso deixar de rir da cara espantada dos pretendentes a embaladores. Corretores enxergam cada senão no imóvel, as pequenas ranhuras e os defeitinhos. Como editores de texto minuciosos, apontam os erros de grafia e de pontuação. “A reforma não é luxuosa, mas é um bom apartamento, não fica atrás do posto, e voltaram a usar tacos de madeira”. E assim vou me despedindo da vida na superquadra 303 sul, para sempre sinônimo da gravidez do caçula, da morte da minha mãe, da infância e da adolescência dos meus filhos,

Bosquejo

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Fenda O amor nunca nunca nunca transbordou. Ao lado, mas não junto, próximo, ao alcance da mão, dedos esticados, braços estendidos. O esforço para alcançar amora no fino do galho, prêmio suado.  O amor sempre sempre sempre esquivo, disfarçado e indiferente aos esforços  sempre à distância segura, nunca dentro, perto o suficiente para não ser tragado para não avassalar  desfazendo as margens. O amor nunca nunca o bastante migalhas, porções, nacos  resvala, pulsa ao redor sol que translada, orbita  mas não abrasa.  O amor arredio, desconfiado, inquieto  nunca nunca nunca morada, raiz  certitude.  Paleta do cerrado Azul céu de Brasília em abril ocre-agosto amarelo-ipê marrom poeira de redemoinho bege folhas secas da mangueira cinza queimada braba grafite asfalto molhado coral flamboyant vermelho kaliandra  nude pé de angico  rosa flor da barriguda alaranjado crepúsculo Praça do Cruzeiro  lilás anoitecer no inverno  branco primeira chuvarada verde rebrotação. Visitei a agência de publici

Tropica, mas num cai mais não

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“É no rastro ainda forte do eclipse que a Lua sai de Peixes e entra em Áries. Logo ao amanhecer, ela abre a quarta-feira num salto”.* Tá bem explicado, quase foi um salto triplo. Um buraco na calçada, o mau passo e o celular foi longe. Bateu o recorde olímpico. Eu consegui me segurar na força do meu corpo traumatizado por tombos espetaculares. A queda não aconteceu de fato, só o grito “socorro, Deus!” Um casal à frente se voltou espantado. O celular poderia ter atingido a cabeça de um deles, o que poderia me colocar num processo. A moça que vinha atrás não se abalou e seguiu entediada que só. Que juventude sem sangue nas veias e sem coração, ó dó! Catei meu fone, e segui rumo ao mercado, lembrando que já havia começado bem a manhã catando cacos de uma tigelinha que derrubei no meu quarto. Espatifou sobre o taco de cumaru o potinho branco. Ficou bonito aquele grito. Entro na fila dos dez itens ou menos. A caixa é simpática, porém colado atrás de mim surge um Kurt Cobain murmurando co

Trevosos

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Cortei o indicador esquerdo. A fissura em meia lua na ponta do dedo complica a digitação e o manejo da caneta. Fazia um bom tempo que não me acidentava na cozinha, o que denuncia que pouco preparo pratos hoje em dia. O sangue brotou das profundezas, profuso. Logo escorreu pela mão, chegou ao punho, pingou na bancada de granito. Me maravilhei. Vermelho, fluido, bonito. Levei um minuto para tomar uma atitude a fim de estancá-lo. Das criaturas da noite, a minha preferida são os vampiros. A cena me lembrou dois poeminhas sombrios da juventude neste semestre meio fim de mundo. Não é irônico cerrado também ser sinônimo de trevoso, de enevoado, de brumado, de brumal e até de nebulento? Nunca antes nosso bioma esteve tão sepulcral. Turvo Não aproveitei as estrelas o céu petróleo a inspiração. Não escrevi senti o vazio a solidão: buraco negro, viscoso, cortante. Lâmina ácida dentro, na alma. Gostei de ver meu sangue colorindo o chão. Tape n.2 Oi. Passei a noite num sonho pesado. O calor brota

Desfaleço

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Preguiça ou melancolia? O que fotografo e escrevo são diletas companhias.  Ainda que poucos talvez entendam o sentido de toda a verborragia,  nada posso fazer além de me entregar à inércia destas elucubrações visuais.  A palavra escrita também é uma forma de imagem.  Ventos são carícias na cidade inóspita.  Quisera alísios,  enroscam os cabelos.  Folhas sem rumo fazem  rasantes ao longo do asfalto escaldante a manhã chega e espalha, sem formalidade,  cinzas das florestas entre os prédios. Cremados pelas queimadas, os despojos calcinados  não recebem póstumas  homenagens.  Por que varrer as folhas secas que descansam? Por que acordá-las do sono da morte a lhes conferir a dignidade do ciclo cumprido? Não perturbe o repouso de quem lhe deu sombra. Não desfaça o tapete delicadamente traçado pelo vento. Deixe que os pés lhe reconheçam.  Que os estalidos ecoem pelas calçadas numa espécie de cardioversão.

Tradição

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  “Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: Meu coração está espantado.” (Clarice Lispector em Um Sopro de Vida)   Para quem alimenta o espírito com árvores, fica complicado chegar na hora certa aos compromissos em Brasília. Em cada estacionamento, ao longo das vias, na alça de alguma tesourinha, no meio das superquadras lá estão elas, magnânimas, perfectly splendid , apaixonantes. São os ipês que, ano após ano, seguem nos surpreendendo e nos atraindo. É impossível não ser seduzido. Registrar, portanto, carece, ou melhor, urge. Há os que juram nunca mais tirar foto de ipê, que coisa manjada! No minuto seguinte estamos ali, parados, buscando o melhor ângulo. Aliás, é um contrassenso dizer que uma árvore pode ser óbvia. Jamais. Não há nada igual de uma floração para outra, de uma temporada para outra. O espanto é sempre inédito, o embevecimento é sempre renovado. Ainda bem que hoje eu fiz um caminho diferente do habitual rumo ao trabalho. Repentinamente dei de cara com um bosque

Elementais

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Obsessões por peixes, por conchas e por águas insones. Impossível resistir às suas representações, ainda mais as singelas, como sonhos infantis. Gosto de tapeçarias. Fazem parte das memórias da minha meninice órfã de várias doçuras. A irmã dez anos à frente tinha todos os talentos que a mim faltavam e me eram caríssimos: tocava clarineta, lia partituras, desenhava, falava com gatos e com cachorros, costurava, projetava móveis, desfrutava de um "três em um" com dois toca-fitas e tecia belas tapeçarias. Nunca fez uma para mim. Era como uma das filhas da madrasta. Alimentava um ciúme rancoroso da boboca criança, a cria derradeira de uma mãe viúva, e não perdia a chance de me atormentar. Minha irmã foi abandonando a maioria dos presentes que recebeu da genética ou do destino. Um desperdício triste. Eu cresci sem qualquer dom especial, entretanto escrevo e meus males decanto. E também me alegro com uma peça bonita como esta, obra de uma poeta porreta contemporânea que já passou do