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Saturno

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O tempo singra e sangra perene, implacável. Torniquetes lhe fazem cócegas. Injeções de botox lhe paralisam em pequenas doses, mas as rachaduras do rosto e da alma seguem o caminho inexorável de suas próprias trajetórias. Pulmão, pintura em tela de Malu Engel Chuva após longa estiagem lente de aumento da limpidez sobre uma obra danificada. As tempestades, estilete na mão de uma restauradora habilidosa da tela-vida resgata a natureza combalida. O que estava escurecido e manchado pela fuligem das queimadas,  camadas de poeira dura,  deserto craquelado  é lavado com o poderoso solvente das lágrimas celestes. Opaco dá lugar ao brilho das cores orgânicas.  A obra de arte planetária recupera a vivacidade  respira. A humanidade rebrota Renascença. Seres obscuros, nas gretas, grotas,  de costas a esconder a dignidade perdida na vida de rua, de viadutos impuros casulos de papelão andrajos do caos solidão de marquise concreta iniquidade na cidade indiferente. Desenh...

Dos reinos vegetal e animal

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Esse negócio de coabitar o recinto dos felinos não está dando certo, não.  Sinto preguiça, uma languidez fenomenal. Os bocejos são muitos, a sonolência, infernal.  Fico pelos cantos, imóvel, estátua sem pedestal.  Semicerro meus olhos, num estado animal.  Penso apenas em me jogar no sofá, na cama, na grama... Horas sem nada a fazer além das folhas da aroeira ver.  Sozinha estar, apreciar o pouco falar. Tenho comido pequenas porções as unhas enormes, de leões.  Serão os gatos feiticeiras transmutando a embusteira?  Dizem as más línguas: gato chega a matar gente! Pois minha humanidade se esvai felinamente. Daqui a pouco abandono os óculos, ganho olhar de lince.  E quando o corpo saltar sem peso não mais me reconheço.  Na dúvida, fotografe todos os pés de nuvem, de algodão doce ternura de noivas na passarela da nave cabelos das avós que não conheci. Tudo dentro da normalidade sem gracinha. Só as flores jamais são sem gracinha na impertinência ...

Deliberare

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Passava em frente ao Mercado das Flores no ápice da tarde seca quando uma coroa moribunda cruzou o meu caminho... Nasce-se e morre-se nos dias quentes. Ambas as urgências independem da temperatura lá fora. Ambos os movimentos vêm de dentro.  Penso que a morte no dia quente torna a vida de quem fica ainda mais dilacerante. As flores murcham no velório escaldante. Camisas se mancham de suor. Lágrimas mornas chamuscam as faces. É desconfortável abraçar demoradamente num dia quente e tudo o que necessitamos na partida de quem amamos é um gesto de carinho autêntico, desbragado.  Um cemitério árido, implacável, mata um pouco os que seguem na vida. Nascer num dia quente, por sua vez, é duplamente alvissareiro. Tudo o que se quer é um lugar fresquinho para se aconchegar. O hospital, de repente, torna-se este espaço de acolhimento de alegrias, com suas salas frias. Ninguém se importa com a impessoalidade das paredes brancas, com os longos corredores de portas para o abismo, pois os ...

Agostinas

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Corrente correnteza Nadar contra ou seguir o fluxo? As correntes costumam lhe prender ou lhe enfeitar? Você, elo mais fraco ou fecho resistente:  não larga mão dos seus devaneios, dos afetos? Nem sempre resistir é sinônimo de coragem. Deixa fluir, diluir os atritos  flutue às margens. Mergulhar até engolir água está no cerne do que autentica (ponto crucial, inegociável). Quero distinção na multidão (alergia ao senso comum) Percebi que não é preciso a rrebentar-se contra os paredões para ser quem sou. Em Brasília, 10%. Copo quase vazio, fastio.  Estertores de agosto,  gosto de pó na boca. Cheiro de queimada? Presente.  Coruja buraqueira busca sombra;  calangos se escondem nas úmidas  frestas das pedras candangos bufam. Beber três litros d'água é de lei se o vivente não for besta. Trabalhar com revisão de decisões judiciais no geral é o mais do mesmo. São tantos os temas objetos de litígio repetidos e repetitivos que bocejar é preciso. Em breve, uma IA e...

Acomodação das placas tectônicas

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A pessoa que visita cemitério e igreja de cada cidadezinha que vai. São Benedito, rogai por mim e pelo amigo de vida que sofre com moléstias malvadas. Entrei na simplória nave, onde três senhoras rezavam os mistérios (As três graças do Brasil, as três Marias, as três irmãs…) “Para alcançar as dádivas divinas não é preciso igreja cheia”, disse a mais velhinha. Eu acredito.  (A pessoa sem fé que se comove com a crença alheia). De repente saiu de mim o creio em Deus pai todo poderoso e completo, como decorado para fazer a primeira comunhão aos dez anos de idade. Estava lá dentro, guardadinho para a ocasião precisa e de precisão. Meus olhos marejaram, a ladainha me acalentava. Um sol morno de inverno adentrou pela porta, límpido. Milagre foi meu coração não ter parado de bater, fulminado pelo Altíssimo.  (A escadaria era de fato bem íngreme) Plano sem piloto Perdi o costume de cruzar as asas em quatro rodas. Que trânsito. A cidade lotou, virou um cargueiro. Não mais plana como o ...

Ser&Estar

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Por onde passo trespassa o olhar. Felicidade da fruta paga o pedágio das sementes, cascas e caroços. Sol nos ossos, mesa posta É domingo. Galhos tentam alcançar balões azuis de céu, brigadeiros e papagaios. Gatos buscam afagos. A solidão do cachorro encarcerado não atravessa despercebida a manhã florida a desarmar os niilistas. Pesadelos são presentes que agarro de manhã: me mostram  o que jamais imaginaria (Sofia Mariutti) Voltei a sonhar. Para quem dorme bem, não é digno de nota, mas para mim, é um lindo retorno ao mundo de Jung. Sei que todos nós sonhamos, só não nos lembramos deles muitas vezes. Fazia um bom tempo que minhas noites eram um céu sem estrelas porque o Patz apaga a gente e, ao que parece, também apaga as memórias a longo prazo. De acordo com recentes estudos, a medicação pode influir em casos de demência precoce. Por isso, era urgente que eu mudasse de estratégia. Cheguei à conclusão de que insônia é uma doença crônica como hipertensão e diabetes. Já tentei de tu...

Atenta aos sinais

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Vazio ou Saudade? Sempre as dualidades. Não à toa Cecília Meireles escreveu um de seus poemas mais célebres exatamente sobre esse eterno dilema humano: “Ou isto ou aquilo?” Lembrei de Rômulo perguntando "mamãe, de que o Exupéry gostava mais: escrever ou pilotar aviões?" As crianças e sua maneira dual de entender o mundo. Seus “pretos nos brancos” a colocar em xeque as nossas estruturas. Pois então, entre vazio e saudade, sem dúvida a saudade me faz mais companhia. Mas não pensem que foi simples chegar a esta revelação. Mais de ano na análise e o papo com uma amiga de longa data me descortinaram da névoa que levou metade do que vivi para se dissipar. Agora, aos 54, enfim compreendi. Posso discernir a diferença entre vazio e saudade e não misturar os sentimentos que um e outra proporcionam. É como se eu tivesse feito uma cirurgia de catarata e voltasse a enxergar limpidamente. Clarear me deixou mais leve. Me tirou toneladas de dejetos do peito. Assunto recorrente na terapia era...