Ainda tão longe e tão perto...

Essa história eu precisava ter contado antes, mas as loucuras da vida foram se apresentando e agora voltei a lembrar dela. Para quem me acompanha desde o blog do Vicente, quando iniciei - por convite dele - a narrativa dos meus não-acontecimentos diários, talvez recorde de um texto que escrevi chamado "Cidadãos invisíveis?".

Andei com esse texto impresso no carro por dias, semanas, meses... Sempre à espera dela, a mulher "invisível" (nada a ver com a Luana Piovani, please). Eu precisava, muito, oferta-lhe aquele texto, que era sobre ela, para ela. Já havia perdido a esperança de reencontrá-la. E eis que, em janeiro deste ano, saindo de um café com os amigos Thoróh e Elisabeth, na Chocolates Stans, eu a vejo do outro lado da rua. Determinada no seu passo-ninfa, indo para sei lá onde.

Em debandada, corro para o meu carro. É preciso alcançá-la, a mulher de longos cabelos prateados. A personagem surreal da minha história... Esbaforida, chego ao seu encalço: e agora? Como abordá-la? O que dizer? Com medo e excitação, toco em seu ombro. É a primeira vez que fico tão próxima dela. Daquele olhar que me atravessou, quase me derrubando de tão intenso.
Encontro há muito esperado, clicado pelo amigo Thoróh
- Oi, tudo bem? Eu te procurava há tanto tempo... Queria te dar uma coisa... (E passo a folha amassada, amarelada, para ela)
- O quê? Por quê? Por quê você quer me dar isso? (uma postura hostil, desconfiadíssima)
- Porque é para você. Eu escrevi para você! Sobre você!
Porém ela permaneceu impassível, imóvel e arredia (e aí percebo a imediata inversão de papéis. Quem agora me julga maluca é ela). Insisto:

Ei-la, em carne, osso e cabelos, a minha cidadã invisível
-Tome, é pra você!!!! (uma tensão incrível entre a gente. Aproximação que periga não acontecer. Momento-limite.)

Repentinamente, ela rouba o papel amassado, amarelado e dobrado da minha mão estendida e começa a ler o texto em voz alta. Uma leitura perfeita, sem erros ou dificuldades de entendimento da língua:

"Alguns de vocês já devem tê-la visto por aí. Quem circula pela Esplanada dos Ministérios, Avenida das Nações, Setor de Autarquias Sul e quadras residenciais adjacentes já vislumbraram sua figura esguia e misteriosa. Ela chega a parecer um espectro. Um ente que se move languidamente pelas calçadas e gramados, surgindo do nada nos momentos menos esperados. Por isso sua aura fantasmagórica nos assusta e encanta".

- Como assim misteriosa?
- Ué, porque eu não sei nada sobre você...
- Não sou misteriosa e lânguida!
- É assim que eu te vejo.

E ela me penetra de novo, com aquele olhar insano de tanta lucidez ao avesso. Eu tremo da cabeça aos pés. Alguém lendo o meu texto em voz alta no meio da rua. Alguém que precisa aprová-lo, reconhecê-lo. Alguém que eu considero crazy o bastante para me bater ou lamber. Eu estou a um palmo desse alguém. É cada uma que eu crio para mim!!!

Aos poucos, ela aferrece. Para de ler para mim e lê apenas para ela... Vai se envolvendo com o texto. Talvez gostando? Que prazer para mim! E vejo que esse é o momento de eu me afastar, de dar adeus. Não consegui perguntar o nome dela. Não consegui falar nada além de lhe entregar o texto que escrevi para ela. A figura espectral suspeita do meu movimento de partida e me devolve o papel bruscamente.

- Não, fique com ele, é seu! Guarde com você!

Ela insiste em olhar para mim com aquela envergadura de raio-X. Mas aperta o papel no peito. Eu digo: tchau!

Será que um dia ainda nos vemos de novo de tão perto?

Para quem não se lembra do texto escrito há uns dois anos, ei-lo na íntegra:

Cidadãos invisíveis?

Alguns de vocês já devem tê-la visto por aí. Quem circula pela Esplanada dos Ministérios, Avenida das Nações, Setor de Autarquias Sul e quadras residenciais adjacentes já vislumbraram sua figura esguia e misteriosa. Ela chega a parecer um espectro. Um ente que se move languidamente pelas calçadas e gramados, surgindo do nada nos momentos menos esperados. Por isso sua aura fantasmagórica nos assusta e encanta.

Desconfio que uma cidade só passa a ser considerada madura quando vê nascer as suas personagens folclóricas, suas lendas urbanas. Outro dia estava curtindo uma bela peça sobre o poeta Mário Quintana, e a atriz e roteirista Deborah Finocchiaro perspicazmente inseriu, no texto apresentado aqui, um poema do gaúcho que fala sobre as cidades nunca estarem prontas. Entretanto Brasília para ele era “pronta demais, uma maquete em tamanho natural”.

Por muitos anos convivemos com esta premissa de capital projetada, engessada em tombamentos. Se por um lado preservou certos aspectos da proposta inicial, por outro nos deixou com o estigma de lugar frio, sem esquina, sem alma e sem tradição. Mas como todo organismo vivo, a cidade foi dando um jeito. Violentando a métrica, se tornou menos exata e mais conturbada e suja; mais similar ao Frankenstein que são as conurbações brasileiras.

E com a violência, os engarrafamentos, os puxadinhos, os shoppings e condomínios irregulares, também foram surgindo as personagens emblemáticas. Um sinal de maturidade, de que também estamos construindo nossas estórias diárias. Como uma novela, já podemos detectar, à nossa volta, aquele “louco” que mora na praça de todo bom romance.

Um deles, nem sei se é doido, mas já se tornou familiar para quem passa ou vive por aquelas bandas, é o senhor que mora na parada de ônibus da quadra 103 sul, perto do eixinho. Todos os dias ele dorme em seu abrigo público, enrolado em um cobertor sujo e gasto. Fez do banco abandonado pelos passageiros (acho que os ônibus não param mais ali) o seu ninho acolhedor.

Vocês devem conhecer outras figuras assim, mas a mais fantástica delas para mim trata-se da mulher de longa cabeleira amarelo-esmaecido, a tal “fantasminha camarada” da qual comecei a falar lá em cima. A imagem dela é tão frágil que parece levitar. Ela me persegue. Uma vez a vi tomando água despreocupadamente no bebedouro externo da entrada principal do Congresso Nacional.

Outro dia ela me apareceu no alto da rampa que margeia a pista de acesso da ponte Costa e Silva para a L2 Sul, um local inóspito para transeuntes. Todavia, ela não parecia se dar por vencida. Caminhava em seu andar resoluto em direção a quê? Mistério...

Também já a vi sentada no extenso gramado entre as quadras 103 e a 102 sul. Lembrou-me um quadro de Renoir, o amarelo do cabelo contrastando com o verde da grama. Uma imagem sutil e bucólica repleta de indagações impressionistas, quase se transformando num Pissaro.

A mulher comprida e magra, sem idade precisa. Suas vestimentas frugais...De onde veio? Pra onde vai? Qual é o seu nome? Ela mora na rua? Ela tem filhos? Ela não bate bem da cabeça? Ela vive de quê? Será que ela pede esmolas? Nunca vi. Será que ela tem pensão do INSS? Tantas questões sem respostas aumentando o enigma.

Há uns dois dias eu topei com ela novamente. Ela perambulava pela calçada ao lado da sede da Caixa Econômica Federal. Ao volante, me virei para admirá-la. Podia ter batido o carro, mas não podia perder aquela oportunidade de mirá-la mais de perto. Quase consegui ver seu rosto com mais profundidade. Ela subia o calçamento e eu descia a rua, mas ela se virou para o meu lado, como se suspeitasse que estava sendo vigiada.

A desatenção no trânsito me custou uma faixa errada e uma enorme volta pela L2 para pegar o retorno e retomar meu rumo cotidiano do trabalho. Não dizem que mudar de traçado faz bem para o cérebro, evita o Alzheimer? A translúcida mulher da cabeleira me enche de interrogações, me faz criar mundos paralelos e exercita o sonho. Não há antídoto melhor contra a velhice. Patrimônio cultural da diversidade.



Comentários

  1. Ainda não cruzei com a sua "fantasminha camarada" pelas ruas de Brasília...mas tive uma "cidadã invisível" presente na minha vida, a D. Maria da Paz, uma senhora negra, que ficava dentro dos ônibus com um pedaço de pau na mão e xingando todos que passavam por ela. Seu jarguão era "sai daqui buceta fedorenta". Um belo dia ela estava na parada de ônibus que eu iria ficar e resolvi dar "bom dia" e para minha surpresa ela respondeu com um belo sorriso, desde então viramos "amigas". Acredito que ela se portava "bruta" por pura proteção, no fundo era mais uma de nós "carente" no meio da multidão. O curioso era como as pessoas me olhavam por eu conversar e rir com ela foram momentos que marcaram a minha vida!
    Bjs, Adriani

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  2. Gente, não acredito... Eu sempre vejo essa mulher, ultimamente na comercial da 205 sul. Muita curiosidade de saber quem é, saber a história dela, mas zero coragem de abordá-la. Achei muito legal você tê-la não só enxergado, mas também ter feito esse contato imediato. Sinal de que ela é real. Ou não? :) Beijos, Débora.

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  3. Só você mesma prá ter tamanha sensibilidade... Ela estava com um livro na mão, né? Era uma pista sobre ela, deu prá ver?

    Bjs

    Patty

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  4. Peraí, já sei! Ela não estava em frente à Nova Acrópole? Então ela só pode ser uma Wicca! Ela estava em casa! Seus amigos duendes, fadas e gnomos estavam ali por perto, podes crer... matei a charada!

    Bjs

    Patty

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  5. Querida Lu,

    Conversando com você hoje, compartilhamos o mesmo interesse em saber da vida dessas pessoas, desses seres quase invisíveis, mas muito atraentes.Essa curiosidade sempre foi uma constante.
    Quando olho um andarilho, sozinho, logo penso:como vive, como pensa, como faz para sobreviver, tem família, brincou como todas as crianças, foi em algum momento feliz?!
    Imaginei muitas vezes me aproximar assim como você fez, porém nunca tive coragem.Com ela, a minha curiosidade foi intensa, me chamou muito a atenção, a sua postura, o andar determinado, cabeça erguida e livros sempre juntinho ao peito, aqueles cabelos muito loucos. Pra mim uma sadhu ( uma renunciante), do mundo, pois me passa um ar de sabedoria... louca sabedoria!!!
    Certo dia, Cacá tomava café numa loteria da 202 sul, quando ela entrou e pediu-lhe R$2,00 para um pão de queijo. Ele deu-lhe R$5,00, e imediatamente, ela não aceitou, alegando que não necessitava de mais, somente do dinheiro para comprar o pão de queijo. Ele insistiu dizendo que não lhe faria falta e a convenceu a receber o dinheiro, ganhando em troca um novo testamento de bolso, sujinho, velhinho, que ele guarda até hoje.
    Conversaram e ela disse o seu nome: Joana.Quando Cacá me contou, fiquei radiante! Era a oportunidade que tinha para me aproximar.

    Passado alguns dias, eu estava correndo, próximo a minha quadra, quando a vi, e abri um largo sorriso, e com uma certa intimidade, disse bem alto:Bom dia,Joana! Ia diminuindo o trote, pensei em parar, mas o seu olhar me fuzilou a alma... Em questão de segundos foi como se ela me dissesse:quem é você?O que quer de mim?Como sabe meu nome?Não quero o seu "bom dia". Não preciso nem dizer que fiquei chocada, e segui em frente. Nunca mais tentei uma aproximação.
    Achei legal a sua atitude.Que barato!!! Agora ela tem em mãos algo escrito por você!!! A curiosidade agora é saber:o que ela entendeu? Qual foi a reflexão dela sobre o seu escrito?
    O interesse, a curiosidade continuarão... É isso. Vida louca vida!

    Beijo grande...Namastê!
    Cynthia

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  6. Uau, comentadoras, agora eu fiquei sinceramente comovida!!

    Que legal a sua história, Dri!! Obrigada por compartilhar com a gente!!

    E superteacher Cynthia, obrigada pelo presente: Joana. Agora sei que ela se chama Joana, um nome que amo!!! Sabia que insisti para que minha irmã Marisa registrasse a filha com o nome de Joana? Ela preferiu Taís...

    Sim, Patty, talvez ela seja mesmo uma wicca. Mas acho que iogue Cynthia acertou na mosca: ela é uma sadhu, uma renunciante do mundo... Com aquele olhar e altivez, parece já estar em outro plano espiritual mesmo.

    Obrigada por tantas e fortes emoções!!!

    Beijos,

    Lulupisces.

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  7. Gente, depois que a Cynthia colocou no comentário o nome dela, Joana, fiz uma pesquisa e descobri no blog abaixo o relato de um encontro de uma publicitária (aí, Luzinha, coincidências telúricas!), com ela! Vejam!

    http://imersoesdissonantes.blogspot.com/2010/03/encontro-com-andarilha.html

    Bjs

    Patty

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  8. Lu,

    Daqui há uns dois anos, talvez menos, meu cabelo vai estar da cor das madeixas da Joana, sua andarilha misteriosa. Será que vão me parar na rua para me entregar uma poesia, uma carta ou quem sabe, uma embalagem com tintura? :-D

    Beijo
    Marcita

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