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Mostrando postagens de 2021

Urnas lotadas de sol

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O último dia do ano começou com um ovo podre se espatifando sobre a frigideira. O aroma putrefato tomou conta da cozinha. Era o sinal de que já foi tarde 2021 e suas plagas . Que tudo de ruim se acabe aqui neste ocaso de dezembro. Que também é um dia lindo, aniversário do sobrinho-neto Samuca, pois a jornada carrega em si a luz e o não. Que os maus presságios e agouros se arrebentem. Que se purifique a casa com cheiro de caminhos verdes e floridos. Que a nevasca amarela dos Cambuís/Sibipirunas cubra nosso chão de dourada percepção. A podridão não nos pertence. O ovo é renovação, não extinção. O ovo é amarelo e branco, as cores mágicas de um novo ano mais caloroso, mais suave, pacificado com suas contradições. Que seja abundante, farto. De muitas dúzias para aplacar a fome do estômago e do espírito. Minha mãe não suportava ovo. Não seria um bom desejo para ela. Se não for para você também, releve. Muitas dúzias de fraternidade e de alegrias em 2022, que se prenuncia rompedor de paradigm

Sem eiras nem beiras

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A estrada é perene convite ao deslocamento. As casas que lhe margeiam são abandonadas às horas, às heras. Seriam nômades seus habitantes? Estariam mortos? Há quantas eras aquelas paredes se taperam? Pelo vão do que foi a porta, imagina-se passos. Chegada da roça, visitas para o café. A tramela da janela se abria ao sol da manhã. Se iluminava em sorrisos tímidos para o moço que cruzava a cavalo. Da falha no telhado reverberam-se choros de crianças; brigas de marido e mulher. Da chaminé que mais não há, exalam aromas de quibebe, dos bolinhos fritos de arroz. Os rotos casebres de beira de estrada são memoriais rodoviários. Testemunharam tragédias: não escapou ninguém daquele capotamento; queimadas e a perda das criações; colheitas fartas e penúrias. As casas arruinadas são um convite à luxúria da imaginação.

Behaviorismo

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  M inha mãe me olhava e  me dizia o seu silêncio agrário:  A profissão do sonho n ão tem salário. (Clodo Ferreira)    Prêmios Jabutis de ayer e de hoy, ligados pelos laços da terra. Vibes rurais, misérias diárias e farturas intermitentes. Talvez em honra ao irmão morto, irmão ogro. Ele, à mamãe, ao meu pai, aos meus avós e às demais ascendências. Todos tubérculos, germinados e geminados no profundo chão goiano. Calhou de ter em mãos esses lirismos rural-raízes em prosa e verso. Nada a ver com latifúndios monotemáticos. Exatamente o contrário: milho, mandioca, roças esparsas: as lavouras eram arcaicas. Vaquinhas esquálidas, pangarés, galinhas no terreiro, porcos nos chiqueiros (fétidos). Criações levianas. Alma lavrada; arada em grotas e cascalhos. A água brota em fios d'água e cachoeiras gélidas. Tudo é raro no cerrado, menos a fantasia da criança que brinca de explorar o mundo. E o universo é poeira, carrapato, pé de baru e manga no pé. Do pó viemos e ao pó retornaremos. Mas algu

Urbanoides

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impressos efêmeros  form follows frictions ideias descoladas  deslocadas  recoladas cartazes superpostos sobrepostos  intercalados em: becos muros  fachadas  paredes paradas passagem analógico  digital conexões  logical songs instalações espontâneas  tristezas arbitrárias ambientes domésticos  áridos públicos profusão objetos  poluição  visual  resistência movimentos political vibes street Arte úmidas mangas quedam livres: passos furtivos sobre o composto vegetal. Emitem o derradeiro suspiro seco, estampido sobre a folhagem e sucumbem verde-amareladas sobre a terra. Lascivo novembro: tenra tez do broto. Fungos gnomos avançam sobre o mapa, besouros trespassam as janelas, a paisagem pinga. Sentimentos escoam pelas erosões da alma musgo.

Refugos

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Joana falou comigo hoje. Tirou a máscara e pediu - na elegância costumeira - qualquer quantia para completar o valor de um remédio. Ver Joana de longe, passando com suas sacolas e cabelos brancos, é uma alegria que sói acontecer na entrequadra 406 e 407 sul. Ela está habituada a transitar por ali. Poucas vezes pede algo. Nessa tarde, me abordou quando cruzamos nossos olhares na calçada. Eu indo, ela vindo. Honrada fiquei ao ouvir aquele fio de voz altivo. Sua presença espectral não causa pena ou angústia. Ela parece ser bem resolvida na vida de andarilha que lhe coube. O mesmo não se constata sobre a crescente horda de zumbis a vagar pelas ruas, a dormir sob as marquises, a urinar atrás das árvores mais bojudas. Ou do guri de quatro anos que urrava acomodado num carrinho de supermercado. O descalabro contido no paradoxo: dois meninos-mercadorias com fome à porta da farmácia. Era para ser um pastel com suco ao cair da tarde. Levantei da mesa e fui ter com aquela jovem mãe. Ela explicou

Iodo

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Ausente e lassa, queria  estar pisando  a areia fina de Arraial do Cabo,  a areia grossa de Amaralina,  em Goiás Velho urdir a tarde  com Bernardo Elis e Cora Coralina,  farejar  cheiro de candeia por toda Ouro Preto…  mas estou presa à molduras de todos os meus retratos.  (Limite – Olga Savary)  Busco o mar fora do mar, como Dorival Caymmi, que não sabia nadar e nunca enfrentou a lida dos pescadores além dos arrecifes. Prefiro observar o mar a entrar no mar, aos moldes de Neruda, que construiu duas de suas três casas-poemas com vistas privilegiadas do oceano pacífico. O mar me habita, mas não passo de uma fingidora. Não sou poeta, não sou contista, não planejo romances. Amo o mar como o amo as palavras, próxima, porém distante. Sereia trôpega, mal flutuo. Canhota, anjo torto. Tropeço nos mesmos temas e obsessões. Ondas de ideias vêm e vão. Desértica e marítima, persigo o abissal, contudo, morro na praia. As metáforas não passam de espuma. As algas? Nem sequer alcanço, quiçá, as profun

Coralinas

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Aqui os velhim tudo dirige devagarinho nessas ruas de pedras primitivas, lascadas. Entre um beco e outro um aroma de fogão à lenha que acabou de arder, lufada de ruína, de cidade-fantasma. Vila Boa de Goiás, Goiás Velho, Goiás: o nome encurta ao longo do tempo. A cidade diminui: senil. Portas fechadas janelas entreabertas igrejas lacradas como túmulos, túmulos coloridos como casas. O chão de Cora enrubesce a face no esforço ladeira acima, na direção celeste. Serra Dourada, casas caiadas gatos andarilhos fardos de polvilho tucanos vivazes, goyazes: pra mode ser Minas, faltam os trilhos.

Hiper-realidade

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Ainda na vibe insetívora/inseticida (afinal, tenho agonia deles, bichos estranhíssimos, craquelados, saídos da imaginação bizarra d'algum realismo mágico genial). Seja lá quem criou essas criaturas - deus, big bang, Darwin - certamente é um invento dotado de personalidade e originalidade ímpares. O caçula estava às voltas com um besouro dias atrás. Colocou o coitado numa tupperware e só descobri quando o pobre jazia, sem uma das perninhas, indefectível de barriga-tanquinho exposta ao céu. Detalhe: ele não leu o meu texto da semana passada. Ele não se interessa pelas ficções sentimentais da mãe. Apenas por livros informativos científicos e musicais. A mãe, aquela que enxerga conexão telúrica em quase tudo, achou bacana o sincronismo. Detalhe dois: o caçula tem asco à maioria dos insetos. Logo o típico survival boy, sempre disposto a se embrenhar no mato e a rolar em superfícies suspeitas. Mas os insetos são assim: provocam nossos sentimentos reptilianos paradoxais. Repulsa e excitaç

Sísifos

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“Onde quero chegar? E lá sei eu? Essa lição aprendi com Rubem Braga: um escritor precisa saber de onde deseja partir. Quanto ao ponto de chegada, isso não lhe diz respeito. Até porque, a rigor, ele não existe. Um escritor não chega a lugar algum, um escritor se limita a partir e isso já é bastante cansativo. Ainda assim, mesmo não chegando, se caminha. E muito. Então vamos em frente!”  (José Castello) Ele não tem o apelo grotesco da barata, tantas vezes retratada em excruciantes passagens literárias. Basta fazer uma pesquisa no google para averiguar que o besouro não mereceu livros e crônicas dos cânones da língua portuguesa (talvez não soube procurar. Se conhecerem alguma, me enviem). O besouro mais famoso do mundo, claro, é um grupo: The Beatles. Depois veio o carro de mesmo nome, mas jamais o automóvel ultrapassou o carisma do fusca. Por aqui, O Escaravelho do Diabo fez história numa geração que soube gostar de ler. Começar com a letra B, portanto, não garante o sucesso de ninguém.

Preces

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atmosférico aos quatro ventos midiáticos se espalham as palavras. Algumas se escondem nas gavetas, outras se propagam pela aldeia. as retidas nos ventrículos podem ferir ou ruborizar As enviadas ao cérebro se expandem em memórias, glórias e histórias recontadas aos quatro cantos. Pontos cardeais são quatro, as direções, inúmeras. Uma palavra la(n)çada à corrente de ar retorna bumerangue ou acerta o infinito. retalhos Refúgio: refugo o cotidiano. Incessante busca pelos rejuntes de poesia,  os tais hábeis remendos para as fendas da existência.

Brasil

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sofria Sofia a menina com as larvas na cabeça. Lava de vulcão queimando os pensamentos a mãe levando as mãos à cabeça em aflição de desamparo. Buscava desanuviar o desespero da filha em carne viva os vermes apodrecidos, os dias sem guarida, a pobreza da existência. Mãe e filha enredadas nas vísceras do mundo. Sofia em agonia não brincava, não comia. Sonhava com laço no sapato e com futuro sem feridas.

Descomplicado

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O amor dos cães é o mais vagabundo que se pode conhecer. Não importa se você é feio ou bonito; cheiroso ou fedido; pobre ou rico; maltrapilho ou andarilho; elegante ou molambento. O amor dos cães é o mais malandro que se pode desfrutar. Não importa se você é alegre ou triste, deprimido ou ansioso; sistemático ou simpático, rabugento ou preguiçoso; sereno ou raivoso. O amor dos cães é o mais desocupado que se pode compartilhar. Não importa se você é pequeno ou grande, novo ou velho; workaholic ou aposentado; lento ou apressado; assim ou assado. O amor dos cães é o mais descomplicado que se pode sentir. Não importa se você é cego ou míope; surdo ou músico; autista ou malabarista; doidivana ou egoísta. O amor dos cães é vadio, porém, atento. Não exige correspondência além do mínimo de humanidade em nós. The love of dogs is the most tramp you can know. It doesn't matter if you are ugly or beautiful; fragrant or stinky; poor or rich; ragamuffin or wanderer; elegant or badly dressed. The

Alquimia

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"hoje eu não tô a fim de corre-corre e confusão eu quero passar a tarde estourando plástico bolha" (Karina Burh) Um cristal na loja de elefantes. A alma de ponta à cabeça, sem janelas para ver as andorinhas ou a esquadra de araras amarelinhas como um raio de sol. Mulheres são bichos esdrúxulos. Proparoxítonas difíceis de rimar. Quando sangram, reclamam. Quando deixam de sangrar, também. Existências dinâmicas e instáveis. Voláteis, não volúveis, à procura do inatingível, do inefável. Persistentes, atravessam a vida no transe de sonhos pueris, equilibrando pratos sujos e bolas de chumbo nas mãos, numa perene dança de Shiva. Isso, somos todas deuses de múltiplos braços invisíveis. Em sincronia, empurramos o carrinho de compras (poderia ser o do bebê), seguramos a guia do cachorro entre as pernas e paramos para fotografar o ipê branco florido: sublime aparição. Claro que existem mulheres capacitadas para os dias comuns. Para a impecável matemática da rotina. Contudo, generalizar

Incandescente

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Inspirar arde. A cidade crepita ávida de chuva árida de umidade. acéfala de sensatez. Outra semana de sete dias principia. Outro pai de sete, morre: recorde mundial da estupidez. A baforada do ar vulcânico de lá sopra por aqui. O planeta arfa.