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Mostrando postagens de 2019

Feitiço

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Perderam a conta de quantos apartamentos haviam visitado naqueles dois meses. Era uma decisão difícil escolher o lar ideal quando se tem dinheiro contado, suado e economizado por tanto tempo. Cada imóvel que conheciam lhes dava a certeza de que o ser humano é de fato sui generis. As reformas escalafobéticas se sucediam a cada porta que se abria. Num deles, havia uma banheira de hidromassagem postada no meio da sala de estar. Há que se receber os amigos para um banho turco, pois, sim. Em outro três quartos, o banheiro da suíte havia se fundido ao próprio quarto do casal. O amor tudo suporta, inclusive assistir ao amado com prisão de ventre sentado no trono, vá vendo. Cozinhas americanas, ladrilhos portugueses, louças francesas. Granitos tumulares por toda a habitação. Papéis de parede florais dourados para um eterno último baile da Ilha Fiscal. Esse vocês vão adorar, acreditem, tentava encorajar o diligente corretor, que estava perdendo a esperança de receber sua gord

Rave Quântica

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Plácida maneira de iniciar o sábado. Me acompanhe por favor, tire toda a roupa, fique só de calcinha e vista essa bata. Aqui está a chave do armário. Ressonância magnética, aqui me tens de regresso. Desse vez, uma escaneada da cervical. Já fez esse exame antes? Sim, virei habituê. Cotovelo, joelhos. Sem falar naquela de acompanhante do filho, quando ele quase quebrou a cabeça no parquinho da escola. Agora, estava preparada. Sabia que não podia balbuciar meus mantras, pois os vigilantes do lado de lá do vidro captam tudo. Quer um cobertor? Pode ser. Entrei no tubão. Que a rave comece! Puta que o pariu, me esqueci que estou no climatério, tô assando aqui debaixo dessa coberta. Vou suar em bicas em três, dois, um e não posso me mexer.    Procure ficar bem quietinha, ao engolir a saliva, faça bem devagar e não movimente a boca. Tá, entendi, mas fazer sauna não estava no meu chart. Tentei abstrair, respirei fundo e mentalizei os sons do universo, missão complexa com tanto

Confessionário

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Ontem conversava com a minha sogra sobre o assunto. Disse a ela que religião deveria iluminar as pessoas, não emburrecê-las. Mas, infelizmente, o que vemos é o indivíduo crer que a fé dele, de foro íntimo e personalíssimo, deve ser imposta, transferida para os outros, mesmo que a fórceps. Daí todos os fanatismos que culminam em carnificinas desde as Cruzadas ou antes (me desculpem pelas imprecisões acerca de um tema que não é muito do meu agrado). Cresci dentro da igreja católica, literalmente. Passava meus fins-de-semana entre a São Judas Tadeu e a Catedral Metropolitana de Brasília. Minha madrinha era quase uma beata, devota do santo cuja a imagem herdei. Entretanto, não me lembro de atitudes catequizadoras por parte dela. Dindinha sempre respeitou minhas escolhas, respeitava também a anarquia de mamãe. Quanto mais envelheço, mais percebo o tanto que essa velha preta me ensinou.  Nunca tive preconceito religioso de nenhuma ordem. Já frequentei terreiro de Candomblé

Brevíssimos Prolegômenos

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ou Exsurge, inconteste, dessarte: Osmundo (se ele se chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução). Podia ser título de uma exposição: Osmundo de Osgêmeos.  Tarlan (ação rápida contra torcicolos) Raildo (o que rafoi) Hitanielton (alcunha que passa de geração em geração como homenagem, mas na verdade é uma maldição) Pablinie (nome social para os que não querem ser Pablo) Eutácio (os pais não gostam da letra Q) Osmir (irmão gêmeo do Osmar) Laudemir (o cobrador do laudêmio) Laone (a primeira, a única) Reslia (réstia de coisa qualquer) Rogel (marca de spray para cabelo) Zoélia (zoado - pessoa muito doida no gás hélio) Deyver (concorrente do Dover) Vandair (seria um vândalo por aí?) Ronilson (remédio para ronronar) Vangerly (sabonete íntimo feminino) Valdilson (o dono do megafone) Cledson, aumenta o som!

Ternuras

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Tudo o que estava precisando, então, era tomar (uma injeção) na bunda. Médico bom é isso: lhe brinda com elogios aos seus cabelos, diz para não se culpar tanto (parte do tratamento) e lhe aplica uma injeção de felicidade instantânea. Ele disse para eu lhe contar como estaria daqui a dois dias. Bem, digo hoje: estou me sentindo energizada como há tempos não experimentava. Que drogas foram essas, dr. Edgar? Não me importaria de levar uma picadinha dolorida dessas toda semana. Daí acordei às 5h30 da matina naquela disposição típica dos 20 e poucos anos. Fui atrás de uma missão que vinha adiando: caçar, entre os guardados afetivos e profissionais, todos (todos nada, tenho pilhas e pilhas de papéis, cadernos e agendas em um armário gigante na garagem da sogra) a cópia do livro infantil que escrevi, lindamente ilustrado pela amiga Isa Frantz. A ideia é resgatar esse projeto para ser publicado pela Editora Confraria do Vento (editado pela preciosa Karla Melo), com a qualida

Pati-amargosa

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Custava ter seios pequenos e serenidade grande? Meteu uma faca no peito e morreu. Ao menos partiu despeitada, a ingrata. Sim, ingrata. Nem pra me mandar uma mensagem no zap. Vamo levar o pequi, moça? A pergunta tirou a mulher de seus pensamentos embaçados sobre a morte da vizinha. Era domingo, dia de feira. Ela gostava de passear entre as barracas de tudo um pouco. Galinhas vivas ou desmembradas, linguiças, queijos, meninos remelentos, milho na espiga, quiabo, gueroba, melancias.  Aos domingos não ia à missa, preferia a feira. Ritual de comunhão com a intensidade da vida das gentes da roça, uma conexão ancestral com a terra. Gostava de ver o balé dos feirantes que tomavam a rua inteira, encarapitados em barracas de teto plástico até o fim da ladeira. O caos da lida para ela era contemplação. Um mantra que acalmava os sentimentos perplexos daquele domingo. A vizinha sempre fora amuada, mas ela insistia na amizade. Levava bolo, tocava a campainha sem ser co

À procura da transgressão

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"A transgressão das próprias convicções é essencial.  É como no caso da lei, em que a legitimidade depende da hipótese de que,  em dadas condições, a desobediência pode ser a melhor forma de cumpri-la". (Nilton Bonder) Nunca fumei maconha. Nunca experimentei cocaína. Não bebo. Onde você estava, então? Mas você não morava na 715 sul? Incrédulas as perguntas da nova amiga, nascida apenas um ano antes de mim e que também frequentou uma das quadras mais “barra-pesada” de Brasília naqueles longínquos anos da década de 1980. A 715 sul era uma quadra-miscelânea, mosaico de uma cidade que se construiu do nada, reunindo gentes de todos os tipos, objetivos e origens. Suas casas geminadas não foram erguidas para abrigar funcionários do Banco do Brasil, como a vizinha 714. Ou os abastados servidores do Banco Central, a exemplo dos apartamentos da 314 sul. A 715, última quadra da Asa Sul (ou primeira, a depender do referencial) não era o que se classificava, nos p

Pachamama

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(...)Volver a los diecisiete Después de vivir un siglo Es como descifrar signos Sin ser sabio competente Volver a ser de repente Tan frágil como un segundo Volver a sentir profundo Como un niño frente a Dios Eso es lo que siento yo En este instante fecundo (...) Violeta Parra na voz de Mercedes Sosa A viagem para o Chile e norte da Argentina tinha uma Cordilheira no meio do caminho. Resgatou a verve hispano-americana que cochilava nas minhas vivências adolescentes e juvenis. Tudo da rebeldia e da vontade de mudar o mundo tinha a ver com Mercedes Sosa e Violeta Parra. Estive no museu dedicado a compositora chilena em Santiago (sempre lembrando que amo esse nome). Modesto, porém comovente. Foi o bastante para o jorro de palavras de ordem volver a me enredar naquele sonho febril de igualdade, fraternidade e liberdade. Os Andes mexeram com sentimentos que nem sequer sabia que existiam em mim. Seria eu descendente de mapuches, quechuas, chi

Negritude ainda que tardia

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- Coloca Michael Jackson! - Coloca Chico Science! - Coloca Luiz Gonzaga! Assim a gente vai rolando as playlists no carro, atendendo aos pedidos dos meninos que, ufa, parecem bem encaminhados no quesito boas escolhas musicais.  Parando para pensar, três artistas negros (pardos se preferirem) da melhor estirpe. Cada um com seu suingue, sua autenticidade e sua genialidade. Ouvimos também um bocadinho de O Rappa: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro Tudo começou quando a gente conversava Naquela esquina ali De frente àquela praça Veio os homens E nos pararam Documento por favor Então a gente apresentou Mas eles não paravam Qual é negão? Qual é negão? O que que tá pegando? Qual é negão? Qual é negão?” - O que é camburão?, questiona Tomás.  Ele não é do tempo das veraneios vascaínas. Ele não presenciou inúmeros baculejos como eu. Ele próprio nunca foi vítima da truculência ou da desonestidade policial como já fui. Uma vez,

Que las hay, las hay

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Não eram nem oito da manhã e elas já estavam tentando contato.  Saiu para a caminhada com a alegria de um feriado que fosse só dela. Sempre curtiu mais às bruxas do que as fadas. Definitivamente, nunca foi princesa. E se gosta do balé é por causa do Cisne Negro, não da Bela Adormecida.  No meio da caminhada, uma velha esquisita agarrou o braço dela e começou a falar coisas incompreensíveis.  Ela estava com o fone de ouvidos cantarolando e levou alguns segundos para perceber que talvez aquela senhora quisesse apenas lhe mostrar o pássaro que ciscava a grama logo à frente. Puxou um dos fones e notou que a idosa permanecia ininteligível.  Não levou mais do que outros segundos para a velhota se agarrar ao braço dela com valentia. Assustada, ela se desvencilhou, e seguiu no passo vigoroso do exercício matinal, sem olhar para trás, porém um pouco culpada: se a idosa fosse como o seu antigo vizinho, cujo cérebro foi tomado pelo Alzheimer e se perdia com frequência

Devocional

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“Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei". (Michelangelo) O pé da bailarina é a escultura de mármore que se move, talhada pelo dom de um escultor titereiro. Ele projeta o pé diáfano, fluido, elástico e tenso. A dança incrustada em cada nervo, em cada músculo. O corpo da bailarina é apenas o pretexto para criar-lhe os pés de pluma em movimento. Lívido, o peito do pé da bailarina se curva numa parábola sobre beleza e infortúnios. Dedos que tocam o chão e se fundem num enlevo para alçar as nuvens do onírico. Tendões rijos e atléticos são postos à prova da leveza e da perícia.  A região plantar se esgarça pela força da impulsão e o pé da bailarina voa além da cabeça, se lança até a lua ou rodopia, em parafuso de cristal, buscando o centro da terra. O pé da bailarina não reconhece fronteiras e limites. Despido, revela a dor de sustentar a perfeição. O volátil pé de mármore da bailarina não está eternizado no museu. Dia após di

Dia Bombril

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Domingo é dos cães a levar seus humanos para passear. Das velhinhas arrumadas e perfumadas que deixam um rastro de flores a caminho da missa. E do avô que empurra, orgulhoso, o carrinho de sua descendência pelas calçadas. Domingo é dia de olhar com mais atenção o céu de chita dessa época do ano. Carece não perder a disputa dos flamboyants: qual deles é o mais incandescente? Domingo, pede o domínio do espaço para andar de mãos dadas e repor os níveis de vitamina D.  Pedalar, depois deitar sobre a grama à sombra e observar os galhos com seus desenhos irregulares. Abstrações.  Quem sabe fotografar na língua do P: pássaros, peixes e pessoas.  Domingo pode ser de bazar e de brechó. Um sorvete no fim da tarde - na casquinha - é de bom tom. O dia exige vestido, short e chinelo. Ou atravessar as horas na negação do pijama. Pode de ser de terminar aquele livro deitado numa rede ou, em rede, jogar videogame com uma galera em Kathmandu. Domingo é co

Faro(lete)

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Inspirada (e expirada) em Eva Furnari, escritora de tantas doidices maravilhosas. Há 38 anos ele suporta a cangalha. Por isso não era de se estranhar que perdesse a noção de si mesmo, sem o peso do jugo daquele apetrecho que apenas cambiava de cor, de grau ou de forma, mas mantinha o domínio.   Contudo, bastou um momento de deslize do parasita para, de repente, se perceber digno. Uma montanha escarpada, sólida, bem desenhada pela combinação de genes. A crista alongada, despida de relevos perceptíveis. Inexistentes depressões e fraturas.  Alpinistas morreriam para escalar aquela face, um deles, inclusive, ousou afirmar que seria perfeito. Assim se sentiu ao se tatear desprovido do indefectível adereço opressor.  Liberto, não somente durante o sono, mas ainda lúcido, permitiu-se a alegre solidão de ser longilíneo e delicado. Às vezes, úmido pelas gotas de orvalho que apareciam de uma hora para a outra.  Estável e simétrico, sem dúvida. Seus túneis esculpido

Calor Latente

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“Escalo o flanco de um vulcão entalhado no gelo,  calor extraído do poço de devoção que é o coração de uma mulher”. (Patti Smith) Sol de canetinha amarelo-ouro. Três da tarde. A mulher sai do útero úmido e morno da massagem ayuvédica para o mundo cáustico de um dia rascante. Olha para os lados, indecisa sobre o que fazer. Ainda tem uma réstia de horas para fingir que não tem filhos, não tem casa e não tem obrigações matrimoniais. A amiga mora ali perto, poderia lhe fazer uma visita-surpresa, porém recorda que não sabe o novo endereço da amiga. Manda uma mensagem e aguarda resposta, lá se foi o inesperado. Tenta se abrigar da onipotência daquele sol de primavera. Acha bonito as mulheres a desfilar com sombrinhas para se proteger dos raios ultravioletas. E se conseguisse se lembrar de fazer o mesmo…  Perdida nesse condicional, caminha a esmo até esbarrar numa árvore que oferta cachos de flores tão amarelas quanto aquele específico sol daquela tarde totalmen

Na lona

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Por gentileza, críticas destrutivas só no privado. Entretanto, ontem perdi a paciência e o nonsense: chamei um habitante da Bolsonaroland de pateta por assumir que foi um dos milhares a repassar fake news por grupos de zap. E não foi sequer na minha timeline! Verdadeira falta de educação básica (mas se é eleitor do Boçal, não deve perceber essas sutilezas). Certeza que foi o climatério, esse bicho-glutão. Não sofri com TPM na juventude para amargar com tensão pré-menopausa na maturidade. Os fogachos haviam desaparecido, porém retornaram. A tal temperatura de suflê no rosto, no peito. Perfeita para florescer as rosáceas, que tem nome bonito só que não são. As bochechas pegam fogo e pipocam em simulacros de espinhas. Ah, a minha antiga pele de pêssego… Partiu sem dizer adeus.  Fadiga e insônia, dupla deprê, não vou contabilizar. Rolam também lágrimas, uma sentimentalidade banal por qualquer coisa. Bem redundante de tão besta. Hoje já chorei por causa de uma propa

Sirenas

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..." ele pôde dar-se o gosto de ver os incrédulos contemplando, com a boca aberta, o maior transatlântico deste mundo e do outro, encalhado diante da igreja, mais branco que tudo, vinte vezes mais alto que a torre, e mais ou menos noventa e sete vezes maior que o povoado, com o nome gravado em letras de ferro, halalcsillag , e ainda gotejando pelos lados as águas antigas e lânguidas dos mares da morte". (García Márquez) Assombrada pelo Titanic há alguns dias, desde que li o conto “A última viagem do navio fantasma”, de Gabriel García Márquez.  Me dei conta de que os naufrágios me atemorizam. Com a leitura, fui transportada de volta ao Porto de Santo Antônio, em Fernando de Noronha, onde, no ano passado e pela primeira vez, mergulhei para conhecer os restos mortais de uma embarcação.  O Maria Stathatos aportou na maior ilha do arquipélago em junho de 1937 (ano de nascimento de outra Maria, minha mãe), quando foi consumido pelas chamas de causa

Mantra das sextas

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"Toda sexta-feira toda roupa é branca Toda pele é preta Todo mundo canta Todo céu magenta Toda sexta-feira todo canto é santo E toda conta Toda gota Toda onda Toda moça Toda renda Toda sexta-feira Todo o mundo é baiano junto" (Adriana Calcanhoto) Respire profundamente. Você está vivo nesse dia úmido de setembro. O singelo milagre que se repete: desaba do alto a água que revigora. Até quando? Reflita e agradeça.  Suspire sonoramente e olhe para o céu (não ao atravessar a faixa para pedestres, não seja imprudente).  Depois, mude o foco ao reles do chão. Perceba as flores que caíram com a chuva da madrugada.  Tire o peso dos ombros numa espreguiçada sem pudor.  Repare que o tom da terra se transmutou do ocre para o marrom-escuro: fecundo. Germine a renovação dentro de você.  Observe aquela árvore que você ainda não havia descoberto. Deixe o vento desalinhar os cabelos, inflar a ro

Ao vivo e on-line

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Não queria soar pedante, mas algumas coisas só acontecem comigo. Tá bom, narcisismo. Serei uma mãe narcisista, daquelas que deixam sequelas irreversíveis nos filhos? Hoje li uma matéria sobre o assunto e fiquei meio cabreira. Mas não é disso que quero falar, e sou eu quem mando aqui, não você, texto. ;) Semana passada arrumei um crush. Para ser exata, foi o crush quem me arrumou. Ele me encontrou no Insta, onde posto um bocado de fotos pseudoartísticas, com legendas descoladinhas, ou poemas alheios e poucas selfies. Aí o cara começou a me seguir, um tal de Ben Watson. Legal. Após uns 30 corações nas minhas postagens, Ben Watson me manda um privado: Hi, Beautiful! Epa, o que foi isso? Resolvi dar uma cordinha, e decidi segui-lo também. Descubro que o cara diz ser sargento do exército americano, residente em Miami e guapo. Respondo a mensagem dele e pergunto como ele me encontrou no mar de gente do Insta. Ele: you are a godness! E me printa uma foto que pedi para Bernar

Pedalando com Potter e Cora Coralina

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Para Monsieur Rodrigô,  que ouve todas as minhas insanidades sem a aquela cara que parece estar dizendo: e eu com isso?  (Mario Quintana com adaptações de quem escreve esse blog).  O conjunto de tubos metálicos agora está por toda parte. As duas rodas com seus raios concêntricos parecem dois sóis a refletir o astro-rei nesses dias insanos de calor. Para onde se olha, lá está uma bicicleta refutada. Às vezes, em pé e digna, aceita com altivez sua sina de objeto de consumo fácil. Noutras, jogada ao chão, retorcida. Corpo inerte, estendido sobre a folhagem ressecada.  Sinto comiseração pelas bikes ao relento. A imagem estática e solitária das magrelas nos mais inusitados pontos da cidade me dá certa angústia. Remete às cenas de abdução, de extermínio, de ataque nuclear que costumamos assistir no cinema ou na TV.  Num átimo, toda a humanidade desaparece sem aviso e sem piedade. Resta apenas a certeza de que estavam ali um minuto atrás. Mulheres e homens