A rosa do Pequeno Príncipe

Na semana passada, recebi um texto de uma amiga chamado “Sobreviventes do neocid”. O bom da internet é que todos podem escrever coisas legais sobre os mais variados temas. Mas, como tudo tem seu lado Darth Vader, o ruim da internet é que, para mim, que faço da escrita o meu ganha-pão, fica a certeza: num futuro próximo, por que diabos vão me pagar para escrever, se agora todos acham que são escritores e dão pitacos grátis na rede?

Mas deixando de lado o tom apocalíptico, este texto do neocid relata (não é tão bem escrito assim, ufa!) as desventuras de nós, crianças da década de 70, que éramos envenenadas com as melhores intenções por nossas próprias mamães. Tudo para matar os tais piolhos que todos os anos infestavam as cabeças das garotinhas de longas madeixas.

Como a minha mãe, para não dar trabalho, mantinha o meu cabelo curtinho – não tinha piolhos, mas em compensação uma raiva tremenda do meu visual, o que, a longo prazo, pode ser mais intoxicante que o envenenamento lento por neocid – não sofri com aquele pó fedido e venenoso que gerações de garotas usaram na cabeça a cada novo ataque dos infames pediculus capitis. Bonitinho o nome do traste, né?

Entretanto me diverti lendo o texto, que resgatou imagens comuns à infância da gente. Infância perigosíssima, se enxergarmos com os olhos de pais e mães pós-modernos, preocupados em seguir à risca todas as normas de segurança a fim de evitar que os filhos sofram até mesmo um prosaico arranhão.

Analisando o passado, tenho a sensação de que nossos pais foram, de certa forma, verdadeiros homicidas. Pareciam não estar nem aí para a gente, permitindo que brincássemos na rua sem a presença de um adulto, um superego a nos vigiar. Fazíamos de tudo: escalar árvores até os galhos mais altos, subir telhados, tocar a campainha dos outros e sair correndo (eis aí uma das atividades terroristas mais divertidas), brincar de polícia e ladrão com revólver de brinquedo (urgh, que medieval!!!, se escandalizarão os xiitas pelo desarmamento das armas de brinquedo).

Descer de carrinho de rolimã pela ladeira sem capacete, sem tornozeleira, sem eira nem beira. Andar de bicicleta pelos matagais, subir em prédio abandonado... Nossa, essa existência está tão distante da vidinha clean dos nossos “filhos de apartamento”, com babás, álcool em gel para evitar gripe suína e aulas de inglês a partir dos três anos. Que tédio, hein! Ainda bem que eles não sabem como era divertido excursionar pela cidade sem medo de ladrão, estuprador, sequestro-relâmpago, gangues e pedófilos.

Sem falar que viajávamos, aos bandos, em porta-malas de carros. Meus primos e eu a caminho de Salvador, alegremente instalados sobre um colchonete no fundo da Belina branca do meu tio, que obviamente não dispunha de ar-condicionado. Que horror! E na cidade não tinha diferença: passamos a infância e adolescência sentados no banco da frente ou de trás. As posições podiam até variar, mas algo nunca variava: a inexistência do cinto de segurança.

Chocante é que naquela época tudo era assim normal e muita criança deve ter morrido por causa disso, mas acredito que a maioria sobreviveu com marcas nas canelas para contar estas histórias, pois os automóveis não eram tão potentes e tampouco o estresse escorria das mãos dos motoristas. As ruas não padeciam de engarrafamentos enlouquecedores e, vamos combinar, quem conseguiria pilotar em vertiginosa velocidade fuscas, kombis, variants, brasílias e corcéis?

Porém, aterrador é que agora isso não é permitido pela lei, nem pelo bom senso, mas muitos pais insistem no comportamento de alto risco, transportando suas crianças em pé no banco de trás ou no colo da mãe, da tia ou da babá no banco da frente. Eu cruzo por estes carros e fico zangada. Dá vontade de fechar um deles, descer e lascar um sermão bem politicamente correto na cara destes boçais.

Não gosto de fazer apologia das frescuras atuais que levam nossos filhos a viver em redomas. Até entendo que o mundo se mostra menos inocente do que foi há 20 anos, mas procuro não ficar paranóica. Tenho excelentes lembranças dos meus tombos de cavalo, picadas de marimbondo, chineladas nas pernas, lanhadas no asfalto...

Tive uma infância cheia de molecagem e aventuras. E pretendo que os meus filhos também tenham. Do mega zelo praticado pelos pais da minha geração, adoto sem restrição apenas um deles: criança precisa andar segura dentro do carro, seja por meio do cinto ou da cadeirinha. Em relação aos demais cuidados, farejo o odor do exagero, tornando nossos pimpolhos menos autônomos e, consequentemente, menos criativos. O que podemos esperar destes filhos da superproteção? Salutar seria reavaliar nossos alarmados propósitos.

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