Quem diria...

Dei a partida no carro, apertei o botão do rádio e os acordes de "Vaca Profana", de Caetano Veloso, encheram os espaços do invólucro de metal na manhã fria. Interessante começar a segunda ouvindo uma música que diz tanto e é tão rara nas programações. Mais intrigante, porém, foi perceber que ela estava tocando na rádio Verde Oliva. Peraí. Pausa. A rádio do Exército brasileiro executando Vaca Profana? O mundo está mudado mesmo.

Eu ainda me lembro da capa do disco de vinil da Gal Costa, seu rosto branco, pálido de maquiagem propositadamente fantasmagórica, e a faixa "Vaca Profana" proibida, banida aos arranhões no bolachão "preto com buraco no meio" (só para homenagear a primeira obra musical abusada do Casseta&Planeta). A profana canção não tocava nas rádios na década de setenta/oitenta. Meu irmão mais velho tinha o disco e também a minha devotada admiração devido ao seu jeito black power de ser. Um Tim Maia no Centro-Oeste...

Pois é, fiquei fascinada em ouvir "Vaca Profana" na programação da rádio do Exército que, por sinal, é bem diversificada. Voltei ao passado com as recordações da ditadura militar, que para uma menina ainda longe das chateações do mundo adulto, não me diziam muita coisa. Achava gostoso cantar o hino nacional todos os dias na escola. E ainda hoje gosto de acompanhar a melodia do nosso hino liiiiiiindo de morrer às oito da matina. Onde? Na Verde Oliva, é claro.

Já para a infância do meu marido, a ditadura teve sabor amargo: os pais professores universitários, invasão da UnB... Ele recorda que o pai xingava os militares em casa dia sim e no outro também. Período nefasto. Só entendi suas consequências bem mais tarde. Assistindo “A culpa é do Fidel”, fiquei matutando naquelas cenas dos tanques militares destruindo o palácio do governo chileno. Que coisa esquisita nesse mundo de hoje. Entretanto, nem faz tanto tempo assim. Quarenta e poucos anos... Parecem quarenta séculos. Imaginei militares implodindo a rampa do Palácio do Planalto. Sofri. Não dá nem para pensar. Apaga. Deleta.

E essa geração “blogueira” que nem sabe o que é LP não pode imaginar o quanto é irônico ouvir Vaca Profana na rádio do Exército. Eles não pegaram na mão o disco de vinil da Gal Costa. Eles não compraram os riscos que impossibilitavam a audição das duas últimas faixas do primeiro trabalho da Blitz, estouro absoluto de irreverência calada na marra pela censura, na grosseira violação da liberdade de exprimir o que não se pode ocultar.

Nas ondas da rádio devaneei, mas, em seguida, uma notícia quebrou o enleio: "Concurso Público para Professores Civis do Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército está na mira do Ministério Público por exigir exames de HIV dos candidatos". Nem tudo ainda é claridade, amigos.

“De perto ninguém é normal”, já advertida a icônica vaca, do intrépido Caetano.

Comentários

  1. Cê tá fazendo bom uso do seu baú de recortes, crônicas e ensaios, hã?
    Inédito ou não, é bem bom.

    Beijos cândidos,

    Valdeir Jr.

    ResponderExcluir
  2. Acho que essa bela canção "Vaca profana" na rádio verde oliva é para compensar um pouco aquela dança vexatória dos soldados que (aí o termo cai bem mesmo) profanaram o nosso hino com um versão funk (eca!) do mesmo.

    Bjs

    Patty

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos