A Hora da Estrela*







Tenho mania de me meter na conversa dos outros. De pessoas estranhas, gente com quem nunca conversei antes. Aliás, isso não é mania, isso é falta de modos. De vez em sempre, não resisto em ser a terceira na comunicação, sabe? Aquela a quem os partícipes do diálogo olham assustados e perguntam: “Alguém te perguntou alguma coisa?”

Uma vez, estava no elevador e o ministro do STJ conversava com alguma servidora sobre uma futura viagem à Áustria e lá intrometi o meu big nose (que de fato é pequeno, a língua é que deve ser grande): “Ah, é uma viagem maravilhosa, linda! Vale a pena conhecer!” Os dois foram até simpáticos, me retribuíram a intromissão com sorrisinhos amarelos.

Dias atrás, ataquei de linguaruda de novo, em plena Feira da Lua. Estava numa banca que vendia pijamas de malha fria para crianças, além de outros apetrechos para bebês recém-nascidos. A vendedora estava tentando convencer a gravidinha ao meu lado a comprar vários paninhos de boca (aqueles que limpam a baba, o golfo, o nariz escorrendo e demais secreções de quem tem neném sabe) e disse: “você pode levar os três, cada um para um dia na maternidade”.

Como assim? Aquela moça com cara de saudável, jovem e com o ótimo peso para uma grávida não poderia estar pensando em fazer uma cesárea. Que desperdício de coragem e aventura! Então meti o bedelho: “Mas ela não vai ficar dois, três dias no hospital. Ela vai ter um lindo parto normal e vai voltar para casa no dia seguinte”.

Pensei que fosse apanhar. Ela, a mãe dela e talvez a irmã ou cunhada dela me fuzilaram como se eu fosse um perigo para a saúde pública. Como se tivessem ouvido a pior ofensa, a coisa mais absurda ou o xingamento mais chulo. Porque mais grave do que se intrometer onde não se é chamado, é dizer para alguém que o parto normal é legal e emocionante.

A gravidinha fez uma cara de pavor inimaginável e respondeu timidamente balançando a cabeça em negação: “De jeito nenhum, vou fazer cesárea”. Mulheres, de onde vem esta fobia que faz o Brasil ser o segundo país com o maior número de cesáreas desnecessárias no mundo? Será que vem de nossas mães, que contam histórias macabras sobre seus próprios partos ou sobre os partos de nossas avós? Será que vem dos médicos que subliminarmente -- ou escancaradamente mesmo -- minam a confiança das grávidas no pré-natal em busca da comodidade e do melhor pagamento que advém da cesariana?

Fiquei refletindo sobre o tema e relembrando meus dois partos naturais. Quanto poder nos é conferido neste momento. É a única vez na vida de uma mulher em que ela vai se sentir totalmente parte do cosmo, da natureza animal. Talvez cometendo um crime violento ou saltando de bungee jumping da Torre Eiffel também se possa obter a adrenalina alucinada que o parto natural nos dá, mas eu não tô aqui para transformar minhas companheiras de espécie em serial killers. Só estou tentando dizer: o lance é bom, é selvagem, é transcendental.

Sim, dói. Dói muito. Mas a dor é passageira. É intensa, mas é relativamente curta. Nada que carrega tanta energia em estado bruto pode ser livre de ônus, mas a gente aguenta com bravura de fêmea, com gritos guturais. Futura mamãe, entenda: é todo o universo saindo de dentro de você e você tendo consciência disso. Melhor que qualquer droga que promete viagens formidáveis, pode acreditar.

É nossa hora de super-heroína, de virar Hulk, de se transfigurar na lobawoman. Por que só os homens podem virar feras? Por que você, mulher jovem, saudável e consciente de sua feminilidade, não se permite experimentar? Por que perder esta oportunidade de emoção convulsionada?

Fico entristecida em ver que a maior parte das mulheres se acovarda e, intencionalmente, opta por não ser parte ativa desta história da qual ela é a protagonista (mas se esquece), aceitando ficar zonza de anestesia, inerte, deitada numa maca por horas após o parto. Se você pode ser a estrela, por que ser apenas a dublê?

Recordo que assim que meus filhos nasceram eu queria sair saltando, pulando, gritando de alegria, mostrando os meninos para Deus e todo mundo, tagarelando sem parar. Uma superdose de guaraná, catuaba e açaí na veia. Aquela fome... O neném logo mamando no peito. Isso é a vida acontecendo em limpidez absoluta. Enquanto isso, minhas colegas de maternidade, sedadas como zumbis, esperavam o efeito da peridural passar para poder segurar seus bebês no colo sem o risco de derrubá-los.

Nos meus dois partos, fui a única na maternidade a parir como as índias, as vacas, as norte-americanas e as européias parem. Se fosse aberração, acredito que as nações desenvolvidas já teria abolido a prática escatológica de trazer uma criança ao mundo. Mas, pelo contrário, já está provado cientificamente que o parto natural facilita a vida da mulher: a recuperação é mais rápida, o leite vem mais fácil, o neném nasce com menos riscos de desenvolver alergias.

Não concordo que alguém fique em trabalho de parto por 24, 36 horas. Isso já seria maldade. Mas se o seu parto pode ser relativamente rápido, por que decidir pela cesárea? A cirurgia é para os casos de risco. Para quando não existe dilatação suficiente. Quando mãe e bebê estão em condições delicadas e não suportariam o calor, o suor e as lágrimas que envolvem o parto vaginal.

Mas como saber se você não é uma boa parideira se não se deu a chance de tentar? Muitas mulheres violentam a natureza e marcam a cesárea para uma data específica: a que fica mais bonita, ou que coincida com o dia do aniversário de alguém especial. Não dão ao próprio corpo e ao próprio filho o direito de sinalizar que chegou a hora do trabalho de parto. Não querem nem ter de sentir este primeiro chamado da nossa ancestralidade mamífera.

Não sou da associação das doulas e muito menos do time das bicho-grilos. Tive meus filhos em hospitais, cercada de conforto e UTI neonatal para o caso de algo não dar certo. Mas defendo, sim, o parto natural.

Na minha opinião, ele é muito mais divertido e marcante que os nove meses de gravidez. Esses, sim, uma chatice indispensável para quem tem a bênção de vivenciar a dor e a delícia de ser mãe, segurando a onda dos tais dez centímetros de dilatação do quadril que trazem para o seus braços o ser mais enrugado e apaixonante do planeta.


*Pegando emprestado da mentora Clarice Lispector






Comentários

  1. Luuuu arrepiei!!!! Lindo demais o seu texto!! "Fico entristecida em ver que a maior parte das mulheres se acovarda e, intencionalmente, opta por não ser parte ativa desta história da qual ela é a protagonista (mas se esquece), aceitando ficar zonza de anestesia, inerte, deitada numa maca por horas após o parto. Se você pode ser a estrela, por que ser apenas a dublê?"

    Rhayana

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