Feliz aniversário, memórias!

 aos meus irmãos e à Dedéia, uma irmã de boas lembranças.

Zapeando nos sites jornalísticos de hoje, descubro que é aniversário de Bob Dylan. O cara faz setenta anos no ano em que fiz quarenta. Quando eu nasci ele já tinha 30 anos e era mais atual do que nunca. Principalmente na vitrola do quarto do meu irmão mais velho.

Ser caçula tem muitas vantagens e não estou incluindo o indefectível mimo alardeado por aí. Não fui uma menina “colocada no colo”, pelo contrário. Tive que suar, e muito, para conseguir um pedacinho de mãe, um pedacinho de casa, um pedacinho de quarto numa família de adultos sem pai. Talvez esteja nessa transpiração toda a raiz da minha inventividade, a capacidade de escrever um “jorro de palavras” por dia. (Salve, salve, amiga Isabel, quem me descreveu tão bonito assim!)

Mas ter irmãos mais velhos pode colocar a gente na vanguarda cultural por anos a fio. Muito do que eu sei e que meus amigos de 40 anos não se interessam ou nunca ouviram falar, eu vivi dentro da minha casa, com meus irmãos mais velhos. Foi no quarto da Vanja que curti Folhas Secas na voz de Elis Regina pela primeira vez. E as Quatro Estações de Vivaldi também. Ninguém da minha escola ouvia esses sons aos 8, 9 anos.

E das canções das fitas-cassetes da minha irmã eu também aprendi amar Belchior e até a plagiá-lo numa redação escolar da terceira série, cujo título era: “Brasileiramente linda”. A professora exclamou em elogio de tia: “Lindo título!”, sem ter a menor ideia de que a aluna exemplar não estava sendo original, mas sim criminosa, num prenúncio do que hoje se tornou lamentavelmente banal com o advento da internet.

No quarto do Edu eu roubava os gibis do Homem-Aranha e do Tio Patinhas, leituras pouco usuais para uma menina de tenra idade. Sem contar aqueles livrinhos de bolso tipo Tex. Havia ainda uma série com uma heroína sexy, quase erótica, de cabelão preto e curvas derrapantes, da qual não recordo o nome, mas muito me borbulhava a imaginação.

E foi no quarto do mais velho de todos, o distante e introspectivo Ricardo, que desvirginei meus ouvidos para Bob Dylan e Credence Clearwater. Aquelas melodias melancólicas, poesia cantada em forma de lamento, arrebataram meu coração. O violão com cara de fogueira e cheiro de milho assado. Meu irmão tirando as canções dedilhando um velho instrumento que deve ter comprado com o primeiro salário de office-boy do Banco da Amazônia.

Depois, na quarta série, quando eu já era íntima desses artistas todos, a professora apresenta uma versão em português de Blowing in the wind e pede que a coleguinha mais musical, a Andréa, decore e cante a letra numa apresentação da escola Notre Dame.

Nunca vou me esquecer da Dedéia (com acento, sim senhor!) lá no palco, com sua voz agudinha e afinada de dez anos, enchendo a sala com “Quanto tempo pode uma montanha existir, antes que o mar a desfaçaaaaaaaaa?” Seus cabelos lisos estavam cacheados para o evento e eu senti orgulho de ser amiga daquela garota de olhos grandes.

E por causa dela, da casa dela, um espaço cênico, eu também fui apresentada a um mundo de cantores encantados e independentes. Uma corrente artística que passava ao largo de qualquer novela de TV.

Parabéns, Bob! Obrigada por tanta coisa boa que você me deu!
E para curtir sem parar, clique aqui:

Comentários

  1. Parabéns pelo texto, Lu. Eu me senti na época em que meus irmãos tb curtiam baladas do anos setenta. É como provar da infância, quando as ouvimos hoje. Mas o Bob, graaande Bob, esse é inigualável.

    Abs.

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  2. Um dos melhores textos seus que eu já li!

    Bjs,

    Rosana.

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  3. Pois é, Lu, eu tb curtia frequentar o quarto dos meus irmãos mais velhos, um mundo de coisas novas, descoladas, algumas proibidas para irmã caçula meio pentelha que ficava xeretando sempre que davam uma folga. Foi na vitrola do Jorge e do Fernando que ouvi pela primeira vez "Secos e Molhados", um bolachão com uma foto muito doida de todo mundo decapitado e servido em banquete... O Jorge, quando voltou dos estatis, trouxe junto David Bowie e a idéia estranha de que uma mulher pode ser um homem e vice-versa. Carole King, James Taylor, Carly Simon, Elton John... E com o Mario Luiz, quando vinha passar férias em casa, dançava Rolling Stones até cair dura no sofá. E os Beatles... vixe, tanta gente boa e que ninguém da minha idade ouvia... sei bem do que vc está falando. bjs e obrigada pelo flash back!
    Isa

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  4. Nossa! Fiquei emocionada Lulu... engraçado ver que a história da gente, pequena, comum, diária, pode ficar com cara de universal, interessante, profunda! Beijos procê!

    Dedéia.

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  5. Puxa, que legal ter irmãos que respiravam cultura nas suas mais variadas formas... fico lembrando daqueles quartinhos dos seus irmãos na sua casa, na época em te conheci, nos quais eu não me lembro de ter entrado, só no seu mesmo. Havia uma atmosfera meio misteriosa neles...rs (fantasias de criança). Nossa, quantos irmãos você tem mesmo??? Nem me lembrava do Ricardo, só pelo nome agora! Ah, e que memória você tem das coisas da escola, né? Você sempre foi a minha memória...rs, quando eu não lembrava de algo, lá vinha você e pá! Me salvava com a lembrança pronta na ponta da língua!

    Beijos,

    Patty

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  6. Adorei!!! A cada frase uma dessas lembranças fantásticas se materializavam na minha cabeça de frágeis memórias... se você tinha 10 anos eu tinha quase 5!!! Mas consegui entrar na mística de todas as passagens aqui trazidas de maneira exemplar! Lembrei do quarto do Ricardo com certeza pois me chamava muito a atenção! E aquele beco na saída dos fundos da área de serviço era realmente uma aventura!!! risos... mas vou te contar o que mais me emocionou... evoquei uma memória bastante interessante desta mesma época. Lembra-se da Jória? Cara, era como uma mãe pra mim naquela época... saudades!
    Beijos, Rodriguetes

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  7. Boa noite irmã,

    Gostei das memórias e da lembrança de almas de irmãos que hoje esqueceram ou colocaram no baú tempos, práticas e sentimentos lindos.

    Eu também, ao ouvir na rádio FM uma restrospectiva de Bob Dylan, lembrei-me com carinho de nosso irmão Rica, do quanto ele gostava de Bob e de "blowing in the wind", entre tantas. E eu gostava dele e de seu modo muito próprio de ser.

    De sua independência, de seu jeito largado, roupas esfarrapadas, cabelos grandes e desalinhados, alegre e simples. Um bricalhão, que ao mesmo tempo em que, por imensa responsabilidade, começou a trabalhar aos 16 anos (office boy no Banco da Amazônia), nunca foi um sisudo, um chato.

    Gostava de falar besteiras, de música, de violão, de motos e jeeps, de liberdade... da pura liberdade...

    Gostava de leituras exotéricas e experiências idem !! "A Terceira Visão" que não me lembro o autor, mas a capa: um rosto de um olhar intenso com um 3ºolho na testa.

    A experiência de olhar fixamente o copo d´água e ao sentir que sua alma se ia como que sorvida por um rodamoinho, interrompeu imensamente assustado e para não tentar mais....

    O Rica era uma figura e um ser ímpar... Sempre foi puro de alma. Vanja também, uma pessoa com alma e habilidades de artista.

    Adorei o texto e sua pureza ao deixar fluir os sentimentos e as lembranças sem nenhuma censura. Leve e lindo como tudo que é espontâneo e que brota da alma...

    Beijos,

    Nena.

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