Orgulho de ser "castanha"


Dois acontecimentos culturais me chamaram a atenção por suas motivações diametralmente opostas. Quase distraída e, por isso, em cima da hora, consegui os últimos ingressos extras para assistir ao show da Rita Ribeiro no sábado que passou. Arrastei comigo minha irmã mais velha, a Nena, não afeita às baladas e um tanto enferrujada quanto às novidades da cena musical.

Mas ninguém podia ficar indiferente àquela deusa elétrica derramando talento performático. Encarnando de Iansã a Ogum, o palco do Teatro Oi virou terreiro de todos os orixás. A casa tremeu com as bênçãos de Jorge. Esqueçam os lugares marcados! Todo mundo caiu na dança do espetáculo Tecnomacumba. Uma mistura frenética do batuque afro e sua espiritualidade com a pegada “roquenrrol”. Transe absoluto.

Minha irmã se deixou levar pelos tremeliques de corpo. Levantou da cadeira e sacudiu a poeira. Apaixonou-se por Rita Rainha dos Raios. Que muito lembrou outra deusa: Clara Nunes. Taí um trabalho de profundo respeito à nossa africanidade, fazendo vibrar o sangue negro que corre em todos os brasileiros. Delírio para o público que lotou a sala aconchegante e saiu de lá livre de qualquer peso sobre os ombros. Saravá!

Algumas horas antes, no mesmo dia, meu filho pergunta:

-Mamãe, papai, vocês sabem quem é a Carminha FruFru?
-Não. Quem é ?
-Ela é da historinha da Mônica, a menina que todos os meninos são apaixonados por ela porque ela tem cabelo loiro e comprido.

Imediatamente minhas veias saltaram. Não de prazer e reconhecimento, como no show da Rita. Paralisei de profundo desgosto. O Brasil, nesse momento em que caminha rumo ao resgate da nossa cultura negra, estabelece a política de cotas raciais e se inicia a obrigatoriedade do estudo da história africana nas escolas, podia ficar sem essa, não?

Pode até ser que a tal Caminha FruFru seja uma espécie de crítica de Maurício de Souza às meninas-barbies. Entretanto, para uma criança no auge da sua percepção do mundo, da formação de seus valores, a poderosa imagem da princesinha loira de olhos lânguidos, estampadas num gibi tão amado no país, pode destruir qualquer ação afirmativa tipo: negro é lindo.

Meu marido partiu para o contra-ataque: “Por que não desenharam uma negra ou mulata linda no lugar dessa patricinha? As crianças são levadas a crer que esse é único sinônimo de beleza possível.”

O problema maior é que não somos uma população de Xuxas, Angélicas, Giseles e afins. E gerações de meninos e meninas crescem esmagadas pelo onipresente padrão nórdico de beleza. Como se sentirem pertencentes? Como se sentirem gente? Olham-se no espelho e descobrem-se diferentes. O diverso não vale, então?

- Meu filho, mas não é preciso ser loira-de-cabelo-comprido para ser bonita. Pode ter cabelo curto, enrolado, ser preta, branca, japonesa, assim como a mamãe... (Não sei se ajudou ou confundiu nessa hora).
- É, assim de cor castanha que nem eu, né, mamãe?
- Bravo!

Salve Vanessa da Mata e seu cabelo pixaim!!!! Rita e Clara, abridora de caminhos, assumindo naquela época a cabeleira crespa sem chapinha. Que a gente renegue essa escravidão do óbvio. Kawó-kabiesilé! Xangô daomé!


Comentários

  1. Salve! Que valham (de fato) todas as cores e estruturas de cabelo e que, dentre outras frases indicativas de estereótipos e valor social, seja abolido esse mimo: "mulher não envelhece, vira loira". Porque, depois de vencida a batalha pelo castanho, ainda nos aguarda (surprise!!) a conquista do branco. E não apenas pela vovó tranquila, mas também, e sobretudo, pela mulher ativa no mercado de trabalho e na sociedade. bjim e parabéns por mais um texto legal. Isa

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  2. O último texto do seu blog me lembrou uma rápida conversa que aconteceu no carro quando uma colega dava carona para mim e para uma linda mocinha.
    Ela tem 21 anos, mas volta e meia faz declarações que revelam uma imaturidade e alienação intrigantes.
    Não lembro como a conversa começou, mas sei que, quando eu disse que era mulato ela entrou em choque.
    Soltou "como!" indignados e com vogais dobradas, algo assim: "coooooooooooooooomo!"
    "De jeito nenhum". "Você é branco!".

    Será que ela é mais uma vítima dessa distorção cromática provocada por Xuxas e Barbies?

    Beijos caucasianos pra você,

    Júnior.

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  3. Querida BelBel,

    o castanho, na verdade, não era a cor do cabelo, mas da pele. Meu filho se autodefiniu como castanho e eu achei incrível, pois na inocência dele tinha toda a verdade.
    Entretanto, concordo contigo que ainda faltam muitas barreiras para cair...Entre elas, a dos cabelos femininos brancos.

    Júnior, meu mulato isoneiro, essa linda mocinha, tadinha, é mais uma vítima desse bombardeio de branquinhas na nossa TV, cinema e publicidade. Negros e suas nuances ainda são raridade em nosso panorama cultural. Um patético paradoxo para o Brasil mestiço.

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  4. Lú, adorei o texto sobre Rita Ribeiro e dos meninos!!!

    Ótimo! Um delírio para os sentidos e os valores, como o maravilhoso show dela..

    Bjos.

    Nena

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  5. Amei o seu texto prima, vc é dez! Me deixa orgulhosa de ser sua prima-xará! A cada dia cresce minha admiração por vc...

    Bjs,

    Luciana.

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