Mozart e a Princesa








Descobriu o câncer e morreu três meses depois. Tsunami. Avalanche. Terremoto. Pábum! Não tinha filhos, herdeiros naturais de qualquer consanguinidade, por isso fez um testamento em nome da dupla de rebentos da melhor amiga. 

- Bom-dia, é a senhora Croê quem está falando? 

- Sim, é Chloé, responde a mulher revirando os olhos. Quem gostaria? 

- Aqui é da parte da dona Sílvia. Precisamos entregar o piano que ela comprou. 

- Mas eu já recebi o piano. Deve haver algum engano. 

- Não tem não, a nota fiscal diz... 

Como assim? Outro piano? A notícia pegou os irmãos-herdeiros de surpresa. A moribunda efetuara a compra apenas um mês antes de suspirar pela última vez. 

O irmão Claude (os pais amavam o savoir-fare francês), morador de outro estado com vida solteira, não tinha espaço para tamanho imbróglio. À primogênita, que inaugurara a bela e espaçosa casa há pouco mais de um ano e já recebera o primeiro piano, coube a tarefa de se virar com a encomenda. Tolinha, não sabia da missa a metade. 

Do caminhão emerge o trambolhão. Qualquer piano é um desafio em si. Objeto pouco afeito à discrição, não se sente bem em qualquer canto. Ele sabe o poder que tem: é absolutista. Um déspota esclarecido e altivo. 

Imagine então um piano totalmente rosa, com banqueta igualmente rosa! Chloé quase caiu para trás. Só não quebrou a bacia porque a filha mais velha socorreu a mãe do faniquito. Mas teve de sair correndo atrás da bombinha de asma. O ataque fulminante foi tão agudo quanto o clarão do sol a refletir no tampo laqueado do piano. 

Era rosa, rosa mesmo: berrante, cintilante, vibrante e esdrúxulo como os esmaltes de nomes inacreditáveis. Tipo assim Superfantástico Rosa Mágico. Não, estava mais para uma Possessão Rosa. Infelizmente não se tratava de Fantasia, era realidade aumentada. Surrealismo na prática. 

Para a nova tutora do piano que só usava nude nas mãos, clássica, quase despojada, aquela aparição era como se tivesse surpreendido a manicure escolhendo o Me Belisca. Ficou rosa de passada! 

O piano parecia um imenso Marshmallow de Alfazema. Um açucarado algodão doce de anelina. HaHaHa seria o tom de rosa apropriado para a ocasião. Bom humor é fundamental nesses momentos de pânico. Porém, a herança não Agrada a Gregos e Troianos. Nenhuma alcunha da esmalteria nacional descreveria o espanto daquela tarde de agosto. Quem sabe o Choque Pink... 

Atualmente, o piano rosa é a materialização do elefante na loja de cristais, ou melhor, na sala bem decorada e chique de Chloé. A mulher, desde sempre uma garota entojada, afeita aos senões (dizem que o nome faz a pessoa, né?), agora tem motivo de sobra para reclamar. Basta deitar os olhos no piano e o chiado no peito recomeça. 

Claude, de longe, tenta resolver o problema de aproximadamente 300 kg. Na total impossibilidade de vender o piano rosa para Elton John ou Lady Gaga, resolveu confeccionar uns panfletos anunciando o inusitado instrumento pelas escolas de música da capital. Quem sabe uma futura diva Liberace se encanta e dá ao ebony and ivory living together in perfect harmony (not yet) embalados em papel celofane o devido afeto? 

Todavia, um enigma promete acompanhar os martelos, bordões e pedais na eternidade: por que Sílvia, em seu leito de morte, comprara um segundo e inusitado piano? (Potenciais compradores supersticiosos, não leiam essa história!). 

Sonho da menina, com certeza. Porque, na hora H, no dia D, o acerto de contas é feito com os nossos mais delirantes desejos infantis. Soltam-se as amarras das vergonhas, repressões, responsabilidades e infelicidades. A gente dá a mão para a criança interior e segue com ela pelo túnel de luz chamejante até o infinito. 





Comentários

  1. Muito bom, adorei!

    Renata Assumpção

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  2. Esse piano é surreal!!! Digno de Sir. Elton John. Texto maravilhoso!

    Cynthia

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  3. Mas que texto ÓTIMO!!!! Adorei, muito engraçado! A descrição do piano, "absolutista", e as cores da esmalteria nacional são impagáveis!!!!!

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  4. Gostei do texto, minha querida. É que se já era um tratante na vida real, sou pior ainda na vida virtual. Sempre deixo para mandar resposta em outro momento e depois esqueço... que a vida virtual logo nos impõe uma tonelada de informações e comentários e likes e fotos e textões e memes e posts e solicitações que são too much para um tratante, real ou virtual, dar conta. O texto tá ótimo, me diverti aqui com as "personagens"...hehe.
    Bj,

    Cacau

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