Recônditos


Pina (2011) Poster


As músicas e os cheiros são os duendes mais danados. Acessam memórias escondidinhas, aliás, esquecidinhas. Memórias com toneladas de pó, enferrujadas, embora queridas e importantes. 

Voltava com os meninos de uma visita ao Cabelo Club. Fim de tarde. Intenso era o movimento ali na L2-Norte, que há algum tempo não frequentava. Vínhamos em paz, cortes cumpridos, filhos mais apresentáveis. Liguei o rádio quando chegava à altura de cruzar o Eixo Monumental e, trocando as estações, pego uma canção do Supertramp que me fez retornar, na velocidade da luz, a um sem fim de lembranças caras. 

“Fool’s Overture” é o nome da obra-prima que não toca nas rádios por ser grande e pouco comercial. My friend we’re not alone... He waits in silence to lead us all home/ So you tell me that you find it hard to grow/Well I know, I know, I know/And you tell me that you've many seeds to sow/Well I know, I know, I know... Como é difícil crescer e abandonar nossos sonhos de grandeza, nossos estrelismos egocêntricos da infância! Começou a chover em plena seca. Eram meus olhos precisando de limpador de para-brisas. 

Tasquei o volume máximo e grite para os meninos: “Dancei essa música no final do ano numa apresentação de jazz!” E toda aquela mágica dos ensaios, as dores nos pés, as broncas da coreógrafa, o suor pipocando do nariz vinham de algum lugar do passado para ser novamente presente. Tudo rodopiou ao meu lado. Um redemoinho de sensações palpitantes. A respiração ofegante, 1,2,3... De novo! De novo! De novo! Sintam a música, estão perdendo a marcação. Vai! 

Vivia e morria por aquele momento de estrela no palco. Não perdia uma aula sequer. Dei o melhor de mim. Quis o meu corpo e a minha falta de talento real que eu não fosse bailarina para sempre. “Você dançou essa música, mamãe?” Sim, quando eu adolescente, meu filho. Tão linda ela, não é? E lá estava eu, aos 14, girando a cabeça em ritmo frenético. Os longos cabelos faziam um desenho espiralado no ar, batendo com fúria em meu rosto de fogo. 

A coreografia era passional, agressiva, profunda. O coração saía pela boca. O drama tomava conta da pequena sala no subsolo do estúdio de dança da professora Dêda, no então Centro Nacional de Arte e Dança, na 116 sul. A baiana Dêda. Onde será que baila essa dama elegante dos corpos em movimento? 

Não estava mais no carro, porém rolando no chão no passo ensaiado à exaustão. De novo! De novo! Mais broncas. Não ser a primeira bailarina, dançar na segunda fila, frustração. A meia-calça rosa, o colante de elanca (meu Deus, de qual recôndito saiu essa palavra?). A música decorada de trás pra frente, a coreografia de frente para trás. Saltos, piruetas... Contrai!! Expande!!! Leve, agora é leve! Bate o pé com força no chão, agora é duro! 

A música termina e o meu show mental também. Retorno na velocidade da luz ainda no meio do trânsito, agradecendo por não ter batido o carro. Meus filhos estão estranhamente calados. Talvez por constatar, assustados, que a mãe abandonara o corpo enferrujado, escondidinho e esquecidinho para tornar-se a jovem ágil e efervescente que, por três, quatro minutos, fez do passado o seu presente encantado. 


Tema do post de hoje (numa versão menos poderosa, mas ainda assim bacana):




Comentários

  1. Luzinha, eu lembro de vc nessa loucura dos ensaios, véspera de apresentação! Vc me falava, por exemplo, de como tinha que ser o movimento de cabeça em determinado passo e que uma outra bailarina teimava que era diferente...isso te estressava muito. Lembro que, claro, fui a sua apresentação! rs

    Eu passei por todo esse processo já mais velha, aqui em Juiz de Fora mesmo. Lembro que a professora dava mais atenção às meninas da turma mais adiantada, com as quais ela mesma iria dançar, né... quanto a nós, da turma de iniciantes (nunca saí dela..rs) ficamos ao deus dará e atravessamos a música toda na hora da apresentação. Terminamos e a música ainda rolava, um fiasco! rs. Que raiva.. esse mundo artístico e seus egos, né... a professora nem tchum prá gente, deveria ter pedido o dinheiro das aulas de volta. Ainda assim, pisar no palco é muuuito legal, né? Adorava ensaiar! Engraçado, apesar de tímida, eu sempre gostei do palco. Acho que Bruna me puxou, só que o lance dela é o teatro.

    Também lembro da minha música! George Michael com "Faith":

    http://www.youtube.com/watch?v=C9iDBkJqxNg

    Adorei!

    Bjs
    Patty

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  2. Amei! Sempre tenho esses flahsbacks. Até hoje encontro com as meninas que dancei no grupo de dança!
    Foi uma época maravilhosa da minha vida! E relembrei mais uma vez ao ler seu texto. Bom demais, querida!

    Beijocas,

    Geysa.

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  3. Loo, dancei na Dêda também! Eu era da turma iniciante, mas lembro da sua coreografia, era LINDA, as duas filhas da Dêda também dançavam nela (na primeira fila, claro rsss)! Tão linda que eu nem lembro qual era a minha, eu só queria assistir a do Supertramp. Fool's Overture. Amava essa música!

    Marisa.

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    1. Marisa Reis, pois eu não me lembrava dessa história... A gente já havia se esbarrado antes da UnB pelos caminhos da vida? Que coisa, hein!!! Ah, Tatiana e Marjorie, as filhas da Dêda... A Marjorie era a tal! A VERDADEIRA bailarina. A Tatiana era mais gordinha para os padrões esqueléticos exigidos pela dança profissional... Lembro como se fosse hoje aquela cova de leoas... KKK!! Beijão!

      Lulupisces.

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  4. E eu achava as duas liiiinnnnndas de morrer! Pois é, tá vendo? Eu nem sabia que você fazia parte daquela tchurma megadancers. Provavelmente você me esnobava (de uma maneira coletiva, nada pessoal, rsss) Afinal, eu era daquela turma subdancer. Acho que a gente dançou Palco, do Gil, ou algo assim. Se nem eu lembro... Eu só tinha olhos para o Supertramp...

    Marisa.

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