Lição de casa II




Em geral, sou intolerante. É um defeito terrível. Detesto, por exemplo e de antemão, os deveres de casas dos meninos. Esses nos quais os pais têm de dar sua mais politicamente correta contribuição, então, me deixam exasperada. Sei que isso tem a ver com a minha incrível autossuficiência infantil. Sobrevivi a um lar hostil. Não por violência ou abusos psicológicos, mas por excesso de contingente e de contingências. 

Eu me virava sozinha. Não existe nenhuma memória de minha mãe sentada ao meu lado acompanhado minhas atividades escolares. Os deveres eram problema meu. E assim cristalizei a missão: a escola era algo que dizia respeito apenas a mim. E não cabia à filha desapontar à mãe – que se espremia de todas as formas – para pagar aquela instituição particular de ensino. Privilégio que nenhum dos meus outros irmãos tivera. 

Mas preciso admitir que alguns deveres de casa dos meninos acabam rendendo boas reflexões adultas. Outro dia, foi a gratidão. Hoje, a tolerância. Valores que faltam ao mundo, principalmente ao mundo dos pequenos déspotas, leviatãs dessa geração de crianças sem fronteiras e sem limites. Nunca o livro de Ruth Rocha, “O Reizinho Mandão”, foi tão atual. 

Sem teorias eruditas, sendo mãe de dois meninos e convivendo com essa galerinha diariamente por meio deles e dos amigos deles, vejo uma total falta de valores basilares como educação e respeito. Os pais estão perdidos e não exercem mais nenhuma autoridade sobre os filhos. Assim, eles chegam à escola crendo que a quadra, a cidade, o país e o planeta são apenas a lata de lixo para o seu vazio existencial. Espaço de liberação da selvageria, do descomedimento e da intolerância, pois desse modo “desaprendem” em casa. 

O tal “freio”, tão antiguinho e caretinha é o que está escasso nesses novos seres “buraco negro”. Nada é suficiente, saco sem fundo, quanto mais tem, mais quer. Desvio de moral que acompanha criancinhas de todas as classes sociais, principalmente àquelas que deveriam estar pensando em mudar o mundo para melhor, por vivenciar condições financeiras e educacionais de bandeja. Entretanto, parece ocorrer exatamente o contrário: a facilidade torna a compreensão, a empatia mais insensíveis ou inacessíveis. 

Crianças que enxergam os professores como aliados, como mestres, é raro. Quando você não vê seu pai e sua mãe como referência de autoridade, não verá qualquer outro adulto postado ali na frente como alguém que valha a pena ser ouvido e respeitado. A não ser que seja o cantor de funk preferido. 

Ontem conversava com um professor de História do Ensino Fundamental em São Sebastião, cidade socada sem dó no pó do vale, que, sem querer, me deu um alento: ali, ele ainda consegue sentir deferência por parte de alguns alunos. Engulo em seco. Nem tudo é leite derramado. Ou, pelo menos, dá para salvar um bocadinho. Corre lá, pega um copo, apara! 

Mas eu estava tentando “ensinar” tolerância para o mais novo sendo nada tolerante com a displicência dele. Vontade de dar uns tabefes. A criança Luciana sozinha no ambiente pouco acolhedor ressurgindo das cinzas... Tolerância é aceitar as diferenças e conviver com elas numa boa. Cada um tem ritmo próprio, suas ondas. Meu filho mais novo ainda vai me dar muitos nós e me propor muitas charadas. 

Coração de mãe aperta, teme pelo futuro, que nem é longe, é diário. A manhã seguinte já é um enigma quando você tem uma criança fora da curva. Queria que todos entendessem o quanto ele é adorável, mesmo externando tanto caos. Todavia, se nem a mãe não acessou o creative mode chamado tolerância plena, como pedir aos outros tanta ternura? Quem dera aceitar sem julgar fosse um game no qual se apertasse um único botão... 

Convenhamos: é mais fácil tolerar o distante do que o próximo. Portanto, sigo. “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender...” 



Comentários

  1. Verdadeiramente colocar em prática o que aprendemos, é viver uma vida de pura sabedoria...pratique, pratique e tudo se realizará!Bjão.
    Namastê!
    Cynthia

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  2. Seu texto me lembrou que, hoje, papai e mamãe completam 41 anos de casados? É isso aí. Bodas de adamantium. Já pensou? 41 anos de mútua tolerância. E muitos picos de intolerância. Duas pessoas que, com todos os solavancos, turbulências, trancos e barrancos, convivem diariamente por mais de 4 décadas.

    Outra coisa que seu texto me lembrou: Roberto DaMatta. Já fui a duas palestras do antropólogo, vi várias entrevistas e em todas essas ocasiões ele conta uma anedota ilustrativa daquilo que você comentou sobre buracos negros existenciais.

    Dois escritores americanos (os nomes variam a cada vez que ele conta: F. Scott Fittzgerald, Jack Kerouac, etc.) são convidados pra passar um fim de semana na mansão de um milionário. Lá, enquanto um deles se admira com tudo o que vê e com tudo com o qual o seu anfitrião se gaba, o outro se mantém impassível. À noite, no quarto, eles trocam impressões. O deslumbrado pergunta ao outro porque é tão indiferente ao luxo e à ostentação. E ele responde: “Porque eu tenho uma coisa que esse cara, com todo o dinheiro do mundo, nunca vai ter. Eu tenho a consciência do que me basta. Do que me é suficiente”.

    Legal, né? Também achei.

    Bitoca procê,

    Valdeir Jr.

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  3. Alto nível esse texto, hein?

    Espero que estejas bem.

    Abraços!

    Reginaldo França.

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  4. Como professora, senti-me altamente representada por vc nesse texto.
    É triste, cenas como presenciei na minha sala esta semana, a menina de 11 anos, aborrecida com as "brincadeiras" sem graça dos colegas, começou a xingar altos palavrões, jogou longe uma carteira (imagine o barulho!) e saiu correndo da sala sem a minha permissão. Tive que ir atrás dela, já que ela é minha responsabilidade ali, porque fiquei com medo do que ela iria fazer. Ela quase chorou quando foi obrigada pela coordenadora a me pedir desculpas. Vc não sabe como me sinto nessas horas, essas situações, é muito baixo astral.
    Luzinha veja o filme "O Substituto". É excelente. Angustiante, por isso, real.

    Bjs
    Patty

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  5. Bom dia Prima Luciana! Tudo bem?

    Adorei o texto! Me identifiquei profundamente com a questão da intolerância. Me sinto exatamente como você escreveu. Contudo, todavia, entretanto, através de muita oração, observação e bom humor (Graças a Deus!), estou tentando, a cada dia, a cada segundo, aprender as lições que "eu penso" que sei de cor!
    É a vida que segue...

    Obrigada e tenha uma ótima semana!

    Beijos nos filhotes e no maridão,

    Jôsy.

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