Palanque




Do nada, Marisa me comunicou: “você vai fazer o meu discurso de aniversário e aposentadoria”. Intempestiva e enfática como sempre. Quando Marisa incute algo na cachola, você pode esquecer. Ela não. Figura teimosa, obstinada. Pega no pé, na mão, no coração. Ocupa espaço. Ninguém fica indiferente. 

Mas escrever o quê nesse discurso, meu Deus! “Você é publicitária e jornalista, então é você!” Tá, sobrou pra mim, já entendi. Vou ter de me virar nesse marketing político. Nunca fiz campanha para candidato, caramba! Ainda mais para candidato honesto como Marisa, franco como Marisa, autêntico como Marisa. Ou seja, Marisa não existe. Marisa, só inventando. O que mamãe e papai estariam pensando quando conceberam Marisa, assim, tão ela mesma? 

Então, vamos lá. Primeiro as primeiras coisas. Já vou logo dizendo, não recordo da infância de Marisa por um motivo óbvio: eu não havia nascido. As primeiras imagens mentais da minha irmã vieram por fotos preto e branco. Esparsas como todas as fotos de antigamente. Um clique de Marisa com 1,2 anos num carrinho de bebê. O rosto redondo, a boca de patinho. Marisa e seu olhar doce, até triste. Uma década depois, uma foto minha de pé, em cima de uma cadeira, seria quase a cópia fiel daquele tirada de Marisa. A mesma cara de lua cheia, só que mostrando os dentinhos, sapeca. 

Depois vieram as fotos da adolescência. Marisa em seus melhores trajes. A mesma suavidade no olhar, a melancolia amendoada. Há pessoas que não mudam as feições ao longo da vida. Marisa é uma delas. Você vê uma foto de 40 anos atrás e reconhece imediatamente. Até hoje minha irmã conserva a boca de patinho, as bochechas apertáveis e a doçura pedindo colo nos olhos miúdos. 

Os anos se foram... Eu já era adolescente e Marisa adulta. Esbarrávamo-nos na casa apertada da 715 sul. Marisa saía pela manhã e voltava tarde. Passara no vestibular da UnB para Biblioteconomia (um curso esquisito que ninguém entendia naquela época). Mas, pelas contingências da vida, que tirara papai muito cedo do nosso convívio, preferiu trabalhar para não ser mais um motivo de preocupação econômica para mamãe. Fez concurso para o GDF, entrou. À noite, cursava Administração de Empresas na UDF. 

Marisa não falava muito. Marisa não era um livro aberto (será que era por isso que pretendia ser bibliotecária?). Se houve uma paixão secreta na adolescência de Marisa, foi tão secreta que ninguém ficou sabendo. Jovem mulher, chamava a atenção pelo corpo formoso. Lembro Marisa na praia de biquíni. Assobios... Ulalá! 

Nessa época, me preocupava com Marisa. Ela não saía como a Vanja, sempre nas viagens, nas baladas e nos namoros. Não era casada e mãe como a Marilena. Não era bicho-grilo, como o Ricardo, com seu cabelo black power. Não era popular como o Eduardo, rodeado de amigos e atividades. Marisa vivia em seu mundo particular. Formiguinha. Se cigarra foi, eu nunca registrei. 

Porém, num belo dia, ela anunciou que estava grávida. Fiquei muito contente! Não era mais preciso me preocupar com Marisa. Minha irmã geraria um ser que lhe completaria a alma. Logo depois, conhecemos o pai da criança. Um coroa!! A jovem Luciana ficou chocada! João Bezerra era o nome do cabra da peste do Ceará. Espertinho ele, né?

Romance às claras, casório sem papel passado, vidinha familiar no Guará I. Marisa estava feliz. Taís era a bolotinha loira encantadora por quem vovó Maria e titios se apaixonaram. Xodó explícito da família. Agora, Marisa tinha um canto para chamar de seu. Uma filha para chamar de sua. Marisa desabrochou. De monocromática, virou multicolorida. 

Aos poucos, Marisa foi descobrindo sua verdadeira natureza: a da oferta. Marisa farta. Almoços de domingo sempre generosos. Dizem por aí que casal que cozinha junto permanece junto. Assim é. As panelonas ao fogo. A comilança. Com Marisa não tem miséria, não tem economia. Ela se entrega de corpo e alma para agradar. 

Acredito que, no trabalho, Marisa não era diferente. Ela é o que é em qualquer lugar. Abraçou o GDF como extensão da própria casa. Galgou, aos poucos, seu espaço e se tornou auditora. Era realizada em sua carreira. Tão completamente engajada, que foi quem mais insistiu para que eu me tornasse servidora pública. A caçula relutou bravamente, mas acabou não escapando do destino comum de quem mora em Brasília. É claro que Marisa ficou orgulhosíssima de mim quando entrei no STJ. 

Todavia, jamais serei uma funcionária de carteirinha como tenho certeza de que Marisa foi. Tinha orgulho de suas responsabilidades e dos colegas. Passou a vida toda checando números e ofertando guloseimas. Voltou para a faculdade e fez Direito, para a alegria celeste do doutor Rondon. Ganhou quilinhos e fãs da humildade dela, da simplicidade dela. Admiradores gratos do literal coração de mãe de Marisa, que adota cães feios, gatos mestiços, pássaros delicados e pessoas de todas as tribos. 

ManaMarisa, que não sabe terminar uma conversa ao telefone. ManaMarisa, dos vestidos e colares estampados. Marisa que não é taurina e, sim, visionária aquariana. Irmã que faz aniversário em fevereiro, como eu, porém, em dias invertidos. Ela 12 e eu 21: linda conexão astral. 

A casa de Marisa é a casa de quem pedir abrigo. Nenhuma outra pessoa poderia estar vivendo no lar que foi de nossa mãe com tanta legitimidade. Marisa é a pura devoção materna. E, falando francamente, se nossos pais não a tivessem inventado com tanta habilidade, a família Assunção seria incompleta. 

Te amo! 


Comentários

  1. Lu,

    Muito lindo o texto para a sua irmã! Tenho certeza de que ela amou a homenagem. Espero que vc tenha gostado da maquiagem. Desculpe ter feito tão às pressas e tão sem estrutura, mas, fiz o possível nas condições e tempo que tínhamos.
    Depois quero ver as fotos. Com certeza, vc estava linda.

    Bjo,

    Monalisa.

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  2. Oi peixinha Mona,

    mais uma vez, quero agradecer a gentileza e disposição da sua parte. Você fez uma bela maquiagem a jato em mim. Adorei o visual!!

    Agora, estou esperando as fotos dos caras contratados pela minha irmã. Na correria, não levei a minha câmera e nem tirei nada com o celular... O sábado foi uma loucura!!

    Mas a festa deu super certo! Minha irmã ficou muito feliz e todo mundo muito emocionado com o discurso e com o clip de fotos que ela fez com tanta gente da família... Principalmente mamãe, tão lindinha e sorridente!Deu muito aperto no coração!

    Beijocas,

    Lulupisces.

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  3. Oi Lu ,

    gostei muito de conhecer a sua irmã Marisa. O discurso ficou ao vivo e em cores para mim, que não conheço a tal!

    Laptop está com dificuldade e é por isso que escrevo do iPod da Eve! Ainda bem que ele quebra o galho!!! Laptop vai para o conserto, não tem outro jeito!!! E feliz aniversário para a Marisa!!!

    Evelyn

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  4. Luciana, tudo bem?
    E os seus meninos? Os três...

    Gostei muito do seu texto falando da sua irmã Marisa.

    Um beijo,
    Paulo.

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  5. Ah, como lembro do rosto e do jeito da Marisa! Sempre muito calada como eu e com um ar misterioso...rs. Melancolia amendoada...é isso mesmo!
    Puxa, como eu gostaria (deveria) ter feito biblioteconomia!
    Seu texto está brilhante e emocionante!

    Bjs
    Patty

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  6. Bacana Lu o texto sobre a sua irmã...com certeza ela também adorou...vocês tem uma relação muito linda e amorosa e isso é muito legal.
    bj,Namastê!

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  7. Ah! esqueci, sou eu Cynthia

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  8. "O discurso estratifica o pensamento e reverencia seu tempo histórico". Quem disse isso foi Nélida Piñon no seu livro "O presumível coração da América - 1", uma coletãnea dos discursos que a escritora pronunciou ao longo de sua carreira.


    Tô citando isso só pra acrescentar algumas toneladas ao peso de assumir essa responsabilidade. E você se saiu muito bem.


    Valdeir Jr.

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  9. Primaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa,

    Você arrasou no discurso! Me senti presente no meio de vocês, escutando as suas palavras, olhando para Marisa... Estou arrepiada!

    Que orgulho pertencer a essa família que é gente da gente. Obrigada.

    Beijos e manda um abração apertado, com sabor de brigadeiro, para a Marisa.

    Uma ótima semana pra ti!

    Jôsy.

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  10. Gostei da homenagem à Marisa, ficou deliciosa. Bom revê-la nos pensamentos lendo o texto. Felicidade para ela e parabéns para você. Beijocas, amiga. Mônica

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