Novelo




“A vida nos separa talvez dos companheiros, e nos impede de pensar muito nisso. Eles estão em algum lugar, não se sabe bem onde, silenciosos e esquecidos, mas tão fiéis”.

Saint-Exupéry, no livro “Terra dos Homens”

Recebi esse trecho do livro no epílogo da peça “Um Príncipe chamado Exupéry”. Veio em forma de carta, como se autor do Pequeno Príncipe tivesse enviado suas palavras para mim. Era só o toque especial de um espetáculo que foi doce, lúdico e comovente do começo ao fim. Marionetes que não precisaram abrir a boca para narrar as peripécias desse homem único. Os meninos de olhos arregalados, quietinhos, curtindo toda a ação. 

Voltei para casa com a magia daquela encenação bacana em cada poro e também com a frase... Comecei a pensar nos meus companheiros desaparecidos, os silenciosos, porém, não esquecidos. Seus modos e aparências guardados comigo fielmente. Saint-Exupéry resumiu bem a consistência desses "fantasmas" mentais que nos acompanham vida afora. 

Onde será que está Neide Aparecida? Não, vou voltar mais ainda no tempo, onde andará tia Vanilda, minha professora do pré-primário? Ou, ainda, tia Leonora, do Jardim de Infância? Figuras fundamentais e queridas da minha caminhada. Alimentaram minha alminha sedenta de carinho e ensinamentos. Será que vivem? Porque na minha memória infantil elas já pareciam tão velhinhas... Talvez não, já se foram quase 40 anos... 

Por onde existirá Cristiane, seus olhos azuis de uma intensidade que eu nunca mais vi? Era ruiva e sardenta. Tinha o rosto redondo e alegre e uma mãe carioquíssima, com mania de falar: “putz grilas”. Cris, minha melhor amiga da 3ª série. Arquitetamos o roubo bem sucedido do coelho branco do mini zoológico do colégio Inei. Chegamos a levar o bichano para a casa dela, imagina! Depois, puxão de orelha na coordenação pedagógica... 

E o Frederico, Fred, o que deve estar fazendo? Alto, magro, moreno. Rapaz bonito, bom amigo de sala de aula. Escreveu um texto sobre mim que descrevia, com precisão, o meu jeito de pisar. Onde foi parar esse texto? Nunca me esqueço. Morava na mesma quadra da Helana, outra fantasminha. Soube que foi mãe de gêmeos. Ponto. Aniversário: 05/05. 

Também não posso deixar partir as memórias de Rodrigo, Rodrigão, o primeiro cara heavy metal que eu conheci. “Estraçalha, Lu!” era a sua palavra de ordem ao adentrar a sala de aula do 1º ano do segundo grau da Escola Católica de Brasília. Repetente, era muito mais conhecedor das coisas do mundo do que nós, fedelhos saindo das fraldas. Obrigada, Rodrigão, por me apresentar um mundo novo feito de cruzes, roupas pretas, tachas e Black Sabath! 

Mas voltando para a Neide Aparecida, cadê ela? Desaparecida! Já fiz pesquisas no Facebook, todavia nenhuma pista do paradeiro da amiga paulistana. A única a me consolar na cidade imensa, Paulicéia fria. Eu, menina mimada do interior, acostumada com a perfeição de Brasília, fiquei chocada ao chacoalhar mais de hora no ônibus para chegar à casa dela, às margens da represa de Guarapiranga. E olha que era domingo, hein! Uma favela. Descobri que minha amiga morava em uma favela. 

Neide Aparecida cursava algo como “Comunicação Editorial” na Faculdade Anhembi Morumbi. Encontramo-nos na Itápolis, um dos inúmeros empregos ridículos que já tive. Batíamos quatro pontos por dia. Éramos jovens operárias de uma empresa de importação e exportação do bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo. 

Depois, voltei para a minha cidade, ela veio me visitar. Deve ter ficado chocada por descobrir: “Nossa, ela é riquinha, mora em casa de dois andares no bairro mais chique de Brasília, o Lago Sul”. Trocamos muitas cartas, mas nos perdemos uma da outra sem nos darmos conta... Ela é aquariana. Aniversário: 09/02. 

Dona Laura, a vizinha de apartamento no bairro da Aclimação, viúva e solitária; Herculano, o amigo maluco da minha mãe: aparência de Jesus Cristo, roupas de Indiana Jones e a crença inabalável em alfabetos secretos contidos em cada letra do alfabeto. Márcia, companheira da hidroginástica (quando decidi vencer o asco de piscina e me lançar água adentro). Mora em Brasília, mas, por alguma razão, é como se não morasse... Participava ativamente de uma religião sem igreja, da qual falava em códigos. Para mim, um mistério que a deixava ainda mais atraente. 

Poderia seguir nessa busca no baú da mente, desenrolado o felpudo novelo de afetos contidos nas figuras humanas que me presentearam com partes de si. Entretanto, despeço-me em respeito aos sentimentos tão comoventes que esses "espectros" revolvem. 



Comentários

  1. Nossa Lu, fui lendo o texto e ao mesmo tempo passando aquele filminho na mente, vieram muitos fantasminhas queridos e distantes...grata sempre por compartilhar suas lembranças que suscitam em nós , muitas reflexões.
    Namastê!
    Cynthia

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  2. Lindas palavras Luciana! O interessante é que, pelo menos no meu caso, se eu for hoje reencontrar pessoas que fizeram substancialmente parte das nossas vidas, não encontrarei o mesmo encanto de antes. Eu tenho uma prima que foi uma das minhas maiores amigas, confidente mesmo, e que hoje quando nos vemos parecemos meras conhecidas...Por isso concordo plenamente com Heráclito quando diz que nunca podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio....Beijos Lu, adorei o texto!

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  3. Coisas que marcam e a gente não sabe o porquê. 3ª série, eu apagando o quadro, movendo meu corpo prá lá e prá cá, direita esquerda direita esquerda...só ouço o Frederico(bonito)falando: A Patrícia dança balé enquanto apaga o quadro!

    Risos gerais na sala...

    Bjs da fantasminha camarada :)

    Patty

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