A mãe do Diabo





"A paixão anda junto com a quantidade de incerteza que você consegue 
tolerar."
Esther Perel, psicóloga

"Mamãe, de que o Exupéry gostava mais: escrever ou pilotar aviões?" As crianças e sua maneira dual de entender o mundo. Seus pretos e brancos... Sempre põem em xeque nossas estruturas. Não é à toa que Cecília Meireles escreveu um de seus poemas mais célebres exatamente sobre esse eterno dilema infantil, ou melhor, humano: “Ou isto ou aquilo?” 

Mas como deve ter sido alimentar duas paixões tão avassaladoras e fazer as duas coexistirem pacificamente durante toda a vida... Não chega a ser uma pergunta, é mais retórica mesmo. Consigo entender que uma não podia sobreviver sem a outra na trajetória do escritor. Afinal, a incerteza é o ímã do passional. Quanto mais rotineira é a existência, menos “criativo” é caminhar sobre a Terra. E para encantar a todos com suas fábulas, ZéPerry precisava, primeiro, enriquecer a própria alma. 

Será que é assim mesmo? Será que um bom escritor precisa viver aventuras instigantes para narrar lindas histórias? A Clarice parece ter sido bem tediosa, com sua vida enclausurada no apartamento do Rio ou da Suíça. Era uma ermitã não muito afeita aos arroubos e sustos. E escreveu bem pacas! 

Eu não consigo entender como alguém consegue viver assim, na calmaria eterna, almejando a placidez dos dias sempre iguais, eliminando os mistérios... Tenho bons amigos que vivem assim. Tenho primos que vivem assim. Tenho irmãos e tios que vivem assim. Parecem bastante confortáveis com essa opção enquanto, para mim, essa escolha pelo conhecido é que é totalmente apavorante! 

Tem gente que sempre vai de férias para o mesmo destino. Tem gente que só usa o mesmo esmalte nas unhas. Tem gente que só come as mesmas comidas. Não sei se eu invejo essa galera sem ambição pelo inusitado ou se nutro um cadiquim de preconceito por elas. Horrível falar esse vocábulo maldito. Hoje em dia, assumir que você tem uma ideia pré-concebida por algo ou alguém pega muito mal. 

Entretanto, preciso ser sincera comigo mesma: repudio e tenho profunda atração pelas pessoas rotineiras e burocráticas. Elas me fornecem algo que eu nunca vou ter: paz de espírito. Quem não ousa não está criando nenhuma expectativa. E a expectativa, ora essa, é a mãe do diabo. (Rio agora, pois se minhas tias lessem esse palavrão no texto iriam fazer o sinal da cruz emitindo comandos desaprovadores). 

Ainda quero fazer tanta coisa! Comprar minha passagem para a Índia, andar de camelo, ouvir rugir o leão no ar quente da savana, participar de um ritual xamânico, voltar à Paris e conhecer o Palácio de Versalhes, ir mais umas 100 vezes para Nova Iorque, consertar o meu braço inconsertável, ver uns shows bacanas de gente mais bacana ainda, não perder mais ninguém tão importante na minha vida, ficar sozinha em casa vendo todas besteiras do canal a cabo, pedir exoneração do serviço público... Dava para reencarnar um bocado e ainda ficaria faltando tempo para experimentar tantas incertezas deliciosas! 

Porém, há escritores que não precisam viver perigosamente para escrever sempre algo marcante. Concluo que não tenho riqueza interior, só pode ser. Pois nessa tentativa de levar uma vida prosaica e caseira eu perco a vontade de contar histórias. Sou uma farsa. É isso.


Comentários

  1. Luzinha, você é uma escritora maravilhosa! Dessas que dão prazer e tesão de ler! "Ver" o que se passa na sua alma, na sua cabecinha inquieta... É legal! Ô mulher da alma inquieta!!! Isso é tão legal e necessário quanto a rotina, às vezes! Tem gente que "explodiria" com miolos em ebulição como os seus!!! Você não é uma farsa! É uma poeta! Sempre com a alma dançante, para nossa felicidade!!! Beijão! Claudia

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    1. Ô Little Claudia, muito agradecida!

      Eu não tenho outra saída a não ser escrever, mesmo que seja uma farsa danada essa tentativa de me tornar uma escritora de fato. Caso contrário, já teria mesmo explodido.

      Beijão,

      Lulupisces.

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  2. Adorei isso: "a incerteza é o ímã do passional." Essa ideia vai me acompanhar uns dias ainda... Mas não acompanhei direito a sua conclusão no parágrafo final. Quer dizer que quem não lida bem com as assim denominadas "rotinas" é uma fraude? Bem, talvez seja o caso de repensar o conceito de rotina. A quais procedimentos vc se refere? Sequências de comportamentos observáveis? Sugiro refletir sobre as rotinas encobertas do nosso pensamento... Será que a marca diferencial das pessoas criativamente produtivas não seja justamente a presença de rotinas de pensamento eficientes (eu quero, eu posso, eu faço, eu gosto, eu invisto, eu tento, eu encontro, eu elaboro, eu transformo, eu aproveito oportunidades, eu busco,..., eu vivo) e a ausência de rotinas paralizantes (eu não consigo, isso não é para mim, eu não ouso, eu não vou, eu sou uma vítima, eu sou fraca, não há mais tempo, ..., melhor virar paisagem da minha vida)? bj e obrigada por me fazer refletir, Luciana.

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  3. Talvez fosse o caso de canalizar toda esta necessidade de aventuras para os seus textos e escrever romances, "thrillers" etc. Assim você poderia se realizar.O ser humano é um eterno descontente. As pessoas que vivem uma vida sem rotina estão sempre dizendo que gostariam de poder parar.
    Eu gosto da minha vida organizada. Quando qualquer coisa sai do lugar eu já entro em parafuso. E mesmo assim tenho muita angústia quanto ao futuro, não este futuro de 50 anos pra frente... O futuro de verdade.

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    1. Oi Larinha,

      ainda não me sinto pronta para escrever romances... Nem sei se tenho quilate para isso. Talvez mais tarde, sei lá. Ainda não fluiu nada sequer parecido com um romance da minha cabeça... Apenas algumas historinhas, tipo conto, que inclusive postei por aqui.

      Claro que você tem angústia do futuro de verdade... Se tem essa necessidade de ter tudo organizado, de controle, o futuro realmente é a incerteza absoluta, ou seja, lhe causa muita aflição. Eu não, pois sou louca mesmo e adoro uma surpresa! KKK!!

      Beijão,

      Lulupisces.

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  4. Uau, Isabelita,

    você agora foi fundo, hein! KKK!!! Sei lá, não tenho essa capacidade racional de refletir. Eu quis dizer que preciso estar envolvida em atividades emocionantes, que me deem tesão, para conseguir escrever. Portanto, acredito que eu não tenha essa tal "rotina de pensamento eficiente". Mas acredito que você está certa. A Clarice e outros escritores muito cerebrais e que por isso mesmo não viviam fortes emoções devem fazer parte desse time. Eu sou puro caldeirão mental nada organizado. Mas também, graças a Deus, não me deixo tomar pelas rotinas paralizantes.
    Obrigada você, por me fazer refletir num nível mais coerente!! :)

    Abreijos,

    Lulupisces.

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