Lição de casa

Ai, ai, esses deveres de casa da pós-modernidade... Acho boa parte deles incrivelmente egocêntrica. Esses de nome são uma coisa! Trabalhar a identidade, o indivíduo. Gente, hoje em dia essas crianças têm de exercitar é a coletividade, a solidariedade. Identidade e individualidade elas já apresentam de sobra! 

Entretanto, nessa semana, fui surpreendida por uma tarefa destinada ao Tomás sobre o tema gratidão. “Trabalhando valores”. Enfim, um dever de casa que vai além. A gente veio da escolinha de criatividade conversando, pois a missão é pra ser entregue no dia 30/04, exatamente quando meu filho completa nove anos. Eu, que cultivo certa superstição, conclui ser outra das conexões telúricas auspiciosas, presente da vida. 

- Mas você sabe o que é gratidão, meu filho? 

- Não. 

Sinuca de bico. Como explicar algo tão imponderável para uma criança de nove anos... Pensa, pensa, cérebro! 

- Gratidão é um sentimento de amor por alguém que lhe fez algo que nenhum dinheiro no mundo pode pagar. Alguém que trouxe para a sua vida mais compreensão, mais carinho, mais ajuda e que isso vale tanto que você vai ser sempre feliz por essa pessoa existir. Você sempre vai agradecer ao destino, a Deus (se você acreditar em Deus) ou a ela mesma por fazer parte da sua existência. 

Bem, isso foi mais ou menos o que eu falei, e aí a gente já estava na metade do caminho, cruzando as portas da São Camilo de Léllis. Tomás seguia ouvindo em silêncio, algo bem típico dele. Não sei foi de grande valia... Então concluí que era melhor partir para os exemplos: 

- Por exemplo, a mamãe é muito grata pela vovó Dindinha ter existido. Ela poderia ter sido apenas uma madrinha qualquer. Ter carregado o título de madrinha e não ter feito nenhuma diferença na minha vida. Só aparecer de vez em quando com algum presente no meu aniversário, essas coisas. Mas, não. Ela preferiu se doar de corpo e alma para me educar, disciplinar e estar sempre ao meu lado. Vovó Dindinha foi minha mãe tanto quanto a minha mãe. Ou em algumas situações, até mais. Por isso, serei eternamente grata àquela velhinha turrona e mandona. 

E aí a porta da gratidão e da verborragia se abriu... Percebi o tanto de gratitude que a gente carrega pelas pessoas e não expressa. Ou expressa, só que gratidão é imensidão. Demanda jorrar que nem gêiser, para ver se contamina o mundo com a plenitude dessa sensação. 

- Eu também sou muito grata às fisioterapeutas que salvaram os movimentos do meu braço. A Maria Amélia, a Dani, a Kênia... Cada uma colocou um pouco de si, do seu conhecimento e sensibilidade para ir devolvendo ao meu corpo a naturalidade perdida. 

- Mas não ficou perfeito, né, mamãe? 

- Não. Mas gratidão não tem a ver com perfeição. Gratidão tem a ver com afeição. Com doação. Ela brota do investir tempo e paciência, colocando de lado o egoísmo diário, para fazer o bem ao outro. É dessa relação de troca que nasce a gratidão. 

Além disso, sou grata a todos os escritores que me encantam e me descortinam tantas viagens. Aos músicos que fazem levitar... 

Não podia deixar de ser grata à Cynthia, a mestra iogue. Alguém que ilumina minha vida com doçura, cordialidade, afeto. A pessoa que me abriu o caminho do yoga, uma verdadeira bênção... 

E a Deus, por vocês, meus filhos, nascidos saudáveis. Lindos espécimes de seres humanos...

O menino me ouvindo delirar, pobre garoto... Saí do devaneio transbordante de amor, voltando na marra para a calçada da 303 sul. 

- Pois é, filho, você percebeu que gratidão não é algo material, uma coisa que a gente pode comprar, mas, sim, sentir, transmitir? 

- Claro, mamãe, essa tarefa de casa trabalha valores e os valores são sentimentos, né? Respondeu o guri, entrando na prumada da nossa casa, pausado e denso como sempre é. 

Por fim, mas de jeito nenhum menos fundamental, grata a vocês, estimados leitores, que me estimulam a continuar por aqui, contando histórias de mim. 

Namastê!