Mentiras que o povo conta




As pessoas deveriam saber: não se pode mentir para um órfão. Órfãos criam expectativas, fantasiam o que poderia ter sido. Tecido. Trama costurada com um fio de esperança. 

Dia chuvoso em Goiânia. Cenário inusitado para seguir as pistas de um passado nublado. A linha 035 deixou a mulher na Praça Cívica. Olhar à procura da Rua 20, no centro. De guarda-chuva caminhando pelas esquinas, chegou ao ponto de partida: uma casa antiga, bem próxima à Catedral. Hoje abriga o anexo da Justiça Federal goiana. Mas já foi a antiga Academia de Direito de Goiás, fundada na Vila Boa (terra de Cora Coralina), em 13 de agosto de 1898, e para a nova capital transferida. 

Se a construção não tem a importância das arcadas paulistas, nem a fama de ter abrigado tantos nomes ilustres da Literatura, História, Filosofia ou Política nacionais, é de valor inestimável para a órfã, pois ali se formara o seu pai. O primeiro da família a concluir um curso superior com muita teimosia e visão de futuro. 

Pena que do casarão antigo não reste muita personalidade. Da grade fechada por causa do feriado da Semana Santa, a garota espiou a história quase apagada do lugar, ironicamente parecida com a do pai dela, esmaecida. Quem o conheceu já morreu ou está em vias de. Quem estudou ali, também. 

Tentou imaginar a figura franzina e empertigada daquele mulato cruzando o arco de uma nova vida. Assistindo aos ensinamentos dos velhos mestres, saindo das aulas e caminhando pelas ruas centrais. Avenida Anhanguera, Araguaia... Terá sido estudante do Liceu de Goiânia, que resiste alquebrado nas cercanias? Provavelmente sim. 

Mas o coração de órfã estava ansioso para tirar a prova da informação recebida: o nome de seu pai estaria gravado em placa no hall do prédio da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), localizado na Praça Universitária, bem próxima dali. A chuva apertara. Não subiria a avenida íngreme a pé. Esperou pelo ônibus que levou o espaço da eternidade dilacerante para abrir suas portas. 

A Praça Universitária em dia de feriado escolar guarda vasta melancolia. Na banca de jornais, indagou pelo prédio da faculdade de Direito. A vendedora saiu da toca e apontou: depois do segundo ponto de ônibus à esquerda. Seguiu com o peito ardendo. Os portões estavam meio cerrados. E se não pudesse entrar? Mas entrou. O que a moça está procurando, pergunta o vigia. 

- Ah, só quero ver as placas dos formandos... Respondeu, tentando fazer figura descompromissada. 

O moço lhe deu passagem. A mulher voltou a ter cinco anos. Sempre só, arqueóloga de sua trajetória, adentrou  o vão escurecido e vazio para buscar em cada lista O nome. Muitas turmas antigas gravaram a existência para a posteridade, mas em nenhuma delas constava Rondon Herculano de Assunção. Aflita, relia do A ao Z. Os olhos pregam peças nessa luz mortiça, justificara-se. Porém, nada. 

Deixou o prédio abatida, mas tentou uma última possibilidade: as placas de formatura ficam apenas aqui nesse hall? Não, moça, no corredor da direita, descendo a escada, ainda tem um bocado. Renovada, a guria fez meia volta volver rumo ao vazio escuro e, com taquicardia, atravessou o corredor, atropelou a escadaria e deu de cara com dezenas de outras listas em bronze ou aço. Turma de 80, 85, 90... Ó dor! Ali estava a nova face do Direito. Não aquela amarelada e morta que tanto lhe era necessária. 

Retornou para a claridade cinza do dia que pingava. Caminhou lentamente para a parada de ônibus sentindo frio de tristeza. Sentou no banco que lhe deixava com os pés fora do chão. Nunca fora tão difícil ter cinco anos. Vontade de chorar aquele aguaceiro todo.


Comentários

  1. Que historia triste, pobre menina procurando pelo pai que nunca conheceu. Uma plaquinha com seu nome escrito resolvia seu problema, curava a dor mas nem isso aconteceu.

    Pobre menina/mulher procurando pela a existencia do pai. Que buraco profundo ela deve ter no seu coracao!

    E o pior eh que ela nao vai achar nada que preencha esse buraco a nao ser a propria decisao de estar em paz consigo mesma.

    Evelyn

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  2. Oi Eve,

    é mesmo uma história triste. Na verdade, o buraco não se preenche nunca. Pergunte aos outros órfãos. Entretanto estar bem comigo mesma passa pela catarse de escrever sobre o assunto.
    Teria sido legal haver a placa para mostrar aos meus filhos, por exemplo. Eles também sentem o vazio desse avô "inexistente". Mas a vida não é como a gente quer. É como é.

    De qualquer modo, não me arrependo da busca e das decepções dela decorrentes. Citando Fernando Pessoa novamente: Tudo vale a pena se a alma não é pequena, né?

    Beijão,

    Lulupisces.

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  3. Você foi sozinha para Goiânia? Quer dizer que a placa com o nome do seu pai não existe? Sua crônica em terceira pessoa ficou bem intensa.

    Beijos,

    da Carmem Cecília.

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  4. Oi Lu, minha querida irmã,

    Transforme o frio de sua alma e desapontamentos iniciais em propulsão para levarmos a um final feliz esta sua busca, válida, importante, locupletante...

    Eu também quero buscar o fio tênue da história do nosso pai e ver se consigo resgatar ou escrever, nem que seja, superficialmente, sua saga, sua luta por um lugar ao sol. E ele conseguiu, mesmo saindo de extrema pobreza, órfão de pai, mãe lavadeira/doceira, de pouca instrução e enorme dignidade, força e fé na vida.

    Mesmo custando sua saúde (frágil como seu corpo franzino, como bem o descreveu). Morreu antes mesmo de poder desfrutar o resultado de seu brutal esforço...

    Vamos fazer isto juntas. Conte comigo no que for possível. Levante nomes e endereços, que vou atrás, escarafunchar, se você não puder ir junto. Agora não posso mais dizer que não tenho tempo.

    Lú, realmente, esperando melhor oportunidade ou um tempo que só a gente faz, quando prioriza o que é mesmo relevante ou importante, deixei morrer grande parte de pessoas contemporâneas da história de nosso pai e que o valorizavam, respeitavam: o tio Bibiano, a prima Gessy. Resta o primo Moacir, que já não está tão lúcido, além de que "fantasia" um bocado.

    Mas é pegá-lo ou esquecer de buscar este passado. Tem ainda o Coronel Ênio Magalhães, que foi por bom tempo responsável pelos vestibulares da UnB e cuja origem é a cidade de Itaberaí/GO, lugar de nascimento de nosso pai.

    Não sei se ainda vive, se está lúcido. Estive com minha mãe em seu apto, aqui no Plano Piloto (talvez na Asa Sul, a memória me falha... Eu também já não estou tão confiável assim...).

    Mas se queremos isso, vamos buscando as informações, com a parentada. Tem a Euzébia, a filha de Tia Antônia (Nega), nossos primos mais velhos (Isabel - filha de nosso Tio Bonitão - não consigo lembrar o nome dele e Pedro, irmão da Eni e filho do Tio Domingos).

    Estou falando de mais velhos e de gente que eu já vi contando história da família e se preocupando com este resgate. O Pedro, inclusive, começou a construir a árvore genealógica dos Assunção. Vamos ver até onde ele chegou. O que falta buscar....

    Não desista irmã, ainda é cedo para desanimar. Nem ao menos destampamos este enorme caldeirão...

    Grande e fraternal abraço!

    (Comungamos do mesmo interesse e respeito pela memória de nosso pai. Vamos adiante...)

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