A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica*





Confessar os dilemas não é garantia de ter um pouco mais de compreensão ao seu respeito. As pessoas conhecem a realidade, sabem que a vida interior é cheia de dilemas, porém, não querem receber esse tipo de confissão.
(Oscar Quiroga, astrólogo) 


A moça estava sentada a duas cadeiras de mim. Tinha acesso ao seu perfil sereno e perfeito, justaposto ao cenário verde da grama. A moça era delicada, uma pintura impressionista no restaurante de comida a quilo. Seus cabelos de pesadas ondas castanhas escuras emolduravam um rosto irretocável, boneca de porcelana. 

Parei para pensar no preconceito contido nessa metáfora: boneca de porcelana. Nunca tinha visto um bibelô de ébano sequer. O homo sapiens é perverso. Seus joguinhos escusos de dominação perpetuados na Língua, na Moda, na Publicidade, nos silêncios, nas entrelinhas... 

Porém a moça era branca. Fato. Silenciosa, olhava em linha reta. A blusa estampada, azulejo português: branca e azul. Parecia hipnotizada por seus pensamentos. E o que será que elaborava a sua cabeça de perfil? Nem moça era. Fato. Uma jovem senhora, balzaquiana provavelmente. Não vestia brincos, nem aliança. Não que eu tenha me dado conta. A jovem irradiava tranquilidade e altivez. Impassível, destoava do ambiente ruidoso à sua volta. 

Será que ela sabe que é bonita? Ah, sabe. Nenhuma mulher é inocente a esse ponto. Ainda mais ela, a boneca de porcelana. Reconhecida, ao longo dos séculos, como o estereótipo inegável de beleza. Difícil é uma boneca negra reconhecer a sua boniteza. “Meu coque é horrível. O seu é legal porque o seu cabelo é liso”, filosofou a pérola mulata que senta ao meu lado na sala de trabalho. Uma das mulheres mais lindas com quem já conversei não confia em seu espelho. 

Os cílios da bealdade do self-service são calmos. Não sei se mastigo ou miro a fachada dela. Sua presença nota que estou a esquadrinhá-la? De jeito nenhum, pois não perde a majestade de seu isolamento.Talvez nem se considere alguém especial e é exatamente essa ignorância que a torna poderosa. Impenetrável. Sozinha, aprecia a companhia de si mesma. 

Descanso os olhos na árvore ao fundo: a copa se confunde com a raiz. A mulher-porcelana se confunde com a própria feminilidade. Seus braços finos e angulosos, de repente, pousam sobre a mesa fria. Alva borboleta. 

O menu burocrático acabara de ganhar aura de banquete real por causa dos azulejos portugueses da blusa da boneca. Ignorei o desprazer do ritual vazio proporcionado pelo self-service e me banhei na sutileza da Arte.


*Título do famoso artigo do pensador alemão Walter Benjamin, publicado em 1955. 



Comentários

  1. Eu queria saber se eu ja causei algum tipo de impressao em alguem assim como essa moca de porcelana causou em voce...

    O almoco foi bom?

    Beijos,

    Evelyn

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  2. Eu observo as pessoas, a medida que isso é possível, claro, tentando não ser notada. Curiosa de quem são, como vivem, o que pensam e fazem. Presto atenção nas conversas dos anônimos quando estou no ônibus, para matar meu tédio. Escuto causos, fofocas, ouço frases marcantes, legais, pego dicas variadas, mas por outro lado desprezo alguns comentários sem noção, frases feitas, conversas torturantes sobre futebol...ah, rio "por dentro" de algumas brincadeiras trocadas entre as pessoas, algumas bem criativas por sinal, próprias do povo brasileiro. Outro dia passando escutei (curioso, veio de um homem isso): "Depois que meu filho nasceu parei de me cuidar, de ir a academia"... e a vontade de virar para o cara e falar: "Sabe que eu também?" rsrsrs. Imagine a cara de tacho dos envolvidos. Mas às vezes dá vontade até de participar ;)

    Gostei da análise ficcional da Vênus de Milo do self-service. Deu até prá dar uma viajada na maionese, né Luzinha! rsrsrsrs, com perdão do trocadilho.

    Bjs
    Patty

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  3. Oxente. você pergunta se é possível se encantar por uma completa desconhecida mesmo não sendo gay. Claro que sim.
    Me apaixonei por você antes de te conhecer quando a Kédyma me falou da amiga que iria passear em Madrid, mesmo sendo gay.
    A lógica é a mesma, né? RsRsRs!!!

    Abreijos amiga,

    Davide

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  4. Belíssimo texto...
    bj.
    Namastê!

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  5. Bacana o texto, Lu! Nada como conseguir experienciar a "aura" de uma obra de arte em pleno self-service… é como aquele grande disse: tudo vale à pena, quando a alma não é pequena, né não?
    Mas e a pintura impressionista é de quem mesmo? Linda, linda!
    bjitos
    Isa

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  6. Luciana,
    Estou maravilhada com o texto que você fez. É como se pudesse visualizar em “3D” a cena. Quanta capacidade de expressão! Ficou lindo e me sinto muito feliz, devo dizer até que com um pouco de falsa modéstia em relação a essa inspiração. Escreva mais, seus textos tão lindos. Adorei!

    Um abraço,

    Cida.

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