A PEC das Domésticas e a minha Insônia




Sou Maryln Moroe pós-moderna. Na hora de dormir uso apenas duas gotinhas... de Rivotril. Não lembro mais de qual foi a última vez que dormi o sono dos justos, dos bons, das criancinhas. Talvez na infância. Se bem que recordo, nos longínquos dias da minha meninice, ficar de olho na minha mãe apagada ao lado para ver se ela ainda vivia. Ou seja, talvez não dormir tenha sido o meu diário (o seria noturno?) sem me dar conta até a adolescência. 

Sempre senti inveja do sono de mamãe. Denso, profundo, imerso na total escuridão. Nem quando sofremos o único terremoto registrado em Brasília ela foi acordada de sua viagem ao mundo de Morfeu. A casa toda tremeu, janelas quebraram, terra caiu sobre nossos corpos deitados e cinderela, nada. 

O rapaz explodiu a casa com um botijão de gás e quase destruiu todo o bloco E da 715 sul. Até hoje me espanta o fato de ninguém ter morrido ou saído gravemente ferido do acontecido. Todavia, mamãe teve de ser sacudida muitas vezes até voltar ao cenário dos filhos vivos e assustados. 

Nem sei por quá estou aqui novamente escrevendo de mim. Por que falar de coisas tão pessoais? Porque na crônica é inevitável. Escrever duas, três vezes por semana, torna tudo muito íntimo. Não há como escapar... Aliás, ouvi sair da boca do escritor e jornalista Sérgio Abranches, nessa terça-feira, que mesmo a mais louca ficção tem traços autobiográficos e quem diz o contrário está mentindo. Concordo. 

Queria falar da PEC das empregadas domésticas, por exemplo. Assunto importante, sério e que atinge de frente metade das minhas amigas leitoras, including myself. Eu não cresci achando que as empregadas eram preguiçosas, burras ou que elas não faziam mais nada além da obrigação de nos servir porque lá em casa nunca houve empregadas "sempre". No máximo, diaristas, pois mamãe não tinha dinheiro para bancá-las. 

A gente sempre teve de fazer os afazeres domésticos, inclusive comida. E na casa da minha madrinha, negra e de origem pobre, claro, muito menos. Então, esse lance de empregada “à disposição”, para mim, só veio com a maternidade. Sempre procurei pagá-las acima do que o mercado pagava. Sempre foram dois salários. Sempre carteira assinada. Sempre tratamento digno, o que me soa naturalmente humano. 

Aprovo a PEC. Só acho que a lei precisava de discussões mais detalhadas com a sociedade antes de entrar em vigor. As pessoas estão perdidas. Uma casa não é uma empresa. Não existe e não funciona nos mesmos moldes. O empregado doméstico e o patrão doméstico precisam entender melhor como é a rotina desse universo "trabalhista-empresarial". Não dá para apenas aprovar, botar na rua e deixar as famílias em polvorosa. As pessoas estão desinformadas e a Imprensa, evidentemente, não ajuda em nada. A Veja é uma merda. Eu deixei de ler essa revista há uns mil anos... 

Essa PEC ainda vai sofrer várias modificações, pode apostar. Mas que as empregadas domésticas precisavam dessa proteção, dessa legitimação, sem dúvida. A maior parte dos patrões é senhor de engenho, acreditem! A maioria delas é tratada igual a lixo, acreditem! E são esses patrões escravocratas os que mais estão apavorados, obviamente. 

Entretanto eu volto para meu mundinho interior e penso: estou arrebentada, exaurida. A excruciante maratona segundaasexta me oprime. Tiro meus óculos fatigada e esfrego os olhos cansados no café da manhã. Desabafo em volume alto: essa rotina me mata! Meu filho mais velho responde: a minha não. 

Que bom, né? Que legal que eu esteja conseguindo não jogar nele toda a minha frustração de ser impotente diante das maldades do mundo-cão que mata professora que estava no lugar errado na hora errada. Que faz conhecer a realidade de centenas de cidadãos derrotados por um sistema judiciário falido. Que, que, que... 

Vou tentar dormir de hoje até amanhã. Missão hercúlea, creiam! Mas nada que um relaxante muscular 10 miligramas não dê jeito. Esperança, ainda, é a última que morre. 



Comentários

  1. Sou uma mulher branca, de 42 anos, curso superior completo, 5 filhos, 2 casamentos. Trabalho fora de casa o dia inteiro. Sou adequadamente remunerada pelo que faço e exerço meu trabalho em condições de liberdade, equidade e segurança, o que me garante uma vida digna. Para conciliar minhas responsabilidades familiares com as exigências do meu trabalho, conto com os serviços de duas empregadas domésticas em minha casa. Sou consciente de que meu arranjo trabalho-família só é possível porque está lastreado nas desigualdades sociais do meu país. Se o Brasil não fosse um país tão desigual, tão injusto, a diferença entre o que ganho e o que uma empregada doméstica ganha seria muito menor e eu, certamente, não poderia pagar por um serviço tão caro. Se fossemos mais iguais, as duas empregadas que cuidam dos meus filhos e da minha casa teriam estudado em boas escolas, como eu estudei, e seriam profissionais qualificadas, como eu sou. A vida delas seria muito melhor do que é. Ambas ganhariam melhor e não teriam que deixar seus filhos de segunda a sexta-feira com outras pessoas, para cuidar dos meus. A minha vida também seria muito melhor. Minha demanda por serviços domésticos prestados por outras pessoas seria a menor possível (por razões econômicas) e tudo dentro de casa seria diferente: todos os adultos teriam que cuidar de sua própria roupa, da limpeza dos ambientes que usam individualmente; as crianças teriam mais consciência sobre a necessidade de manter a ordem dos objetos que usam; a preparação das refeições e a limpeza dos espaços comuns seria uma linda oportunidade de colaboração entre todas as pessoas da casa; haveria uma economia brutal de recursos já que todos seriam mais conscientes da carga de trabalho envolvida em lavar, limpar, passar, cozinhar.
    Que a trabalhadora domestica seja olhada com todo o respeito que se olha para qualquer outra pessoa trabalhadora. Que o trabalho dela seja cada vez mais protegido e bem remunerado. Que seja tão digno quanto o meu. Vai pesar mais no bolso de empregadores? Vai haver demissões em massa por conta disso? Me poupem. O impacto no bolso de quem emprega vai ser mínimo. Milhares de empregadas domésticas nem sequer têm suas carteiras de trabalho assinadas e ganham menos do que o salário mínimo. Nesse cenário, como assim demissão em massa? Estamos falando do mesmo país? Incendiária, quero tocar fogo na revista Veja dessa semana. Truculenta, tenho vontade de bater boca com várias mulheres que empregam domésticas e que, injuriadas, reclamam dessa lei que vai dar mais direitos para essas empregadas “que não merecem nem um centavo a mais, que são péssimas, que dormem na nossa casa, comem demais, trabalham pouco, são desatentas, são preguiçosas, ficam grávidas, tratam mal as nossas crianças...” Meu Deus! Entendo fazer uma reclamação sobre o serviço de uma empregada: tal pessoa cozinha mal, lava mal, não corresponde às expectativas. Já reclamei nesses termos e me parece natural num processo de ajuste em torno aos acordos de trabalho feitos. Mas esse tom, que faz referência “às empregadas” é muito nocivo e injusto. Me perdoem mas lembra sim uma relação escravagista. Temos muito caminho pela frente em termos de curar essa relação de trabalho e até lá, pessoalmente, declaro minha alegria e minha satisfação de me sentir parte de uma sociedade que caminha num rumo melhor depois dessa nova lei.

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  2. É isso aí, Lú!!

    Eles fazem a demagogia e o povo sempre paga... Tenho dó das milhares que já perderam seus empregos... Com toda certeza, haverá grandes ajustes nessa PEC. Casa não é empresa e funcionário doméstico não é funcionário de empresa!!

    Beijos,

    Renata.

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  3. O melhor texto sobre a PEC, Luciana Assunção!

    Beijos,

    Juliana.

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  4. Olha, o que me irrita é que mais uma vez os justos pagam pelos pecadores. Sempre assinei a carteira de minha doméstica e pago melhor do que a grande maioria. Pago dois salários por uma joranda que dura em média de 08 às 15 h. Nunca descontei nada, nem INSS. Nunca pedi que viesse aos sábados. E minha doméstica, é uma pessoa que vale minha amizade. Sempre nos demos muito bem. E agora, para proteger os direitos das outras, eu tenho que cobrar que ela faça uma hora de almoço? Eu tenho que exigir que ela assine quatro vezes por dia uma folha de ponto? Eu tenho que baixar o sistema SEFIP para emitir GFIP mensalmente? Tudo bem, um dia eu me formei contadora e trabalho com SEFIP e GFIP hoje em dia. Mas e quem não tem a menor intimidade com isso? Para trabalhar com GFIP eu fiz um curso sabe? O negócio não é simples... Então, o problema não é terem dados os direitos das domésticas. O problema é que se esqueceram de dar condições aos patrões. Se fosse só pagar o FGTS num guia qualquer na internet, beleza! Realmente eu não vou ficar mais pobre por isso. Lara

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  5. Falou tudo, Lu: "São esses patrões escravocratas os que mais estão apavorados, obviamente.". Não sei bem os detalhes da PEC, e sei que a relação patroa-empregada tem muuuuitas nuances que precisam de atenção. Mas direitos trabalhistas são pra todos, não só pra quem trabalha em escritório, né?

    Fabíola Reich, de Londres.

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