Oração de ateu




Ó Jesus pregado nessa tábua acima da cabeça dos homens de bem:
que a divindade que lhe conferem seja suficiente para mudar
as bocas dos homens,
as mãos dos homens que decidem a vida de outros homens.

Que a Justiça seja divina em conhecimento, em humanidade.
Humilde no objetivo de buscar o que é digno.
Forte para salvar a igualdade.




Tape n.º 2


Oi.
Passei a noite num sonho pesado.
O calor brotava da janela empapando as paredes
com seu suor denso.
Turbulência.

Cruzava as calçadas em busca de uma flor que tivesse sua cara.
Encontrei apenas as mesmas pessoas sem rosto.
Bebi copos de um líquido vinho
ao mesmo tempo
as palavras jorravam e os poços de petróleo roubavam o azul da Terra.

As coisas eram assim,
não repara, não.
Pois o que move o peito – combustível difícil, destilado com dor e paciência –
também é estranho.
Don’t make sense.

E não adiantou acordar.

Ressaca



Conversamos toda a noite.
Abrimos as gavetas para que escapem nossos tesouros guardados sob as roupas.
Nossas pequenas mentiras e loucos desejos.

Escrevemos insanos desabafos para sufocar o calor que sobe,
Comicha.
Não temos coragem de sair da escuridão,
morrer de tesão.

E nossos puros desejos permanecem na vitrine
expostos a nós mesmos.
Conversamos e fingimos entender
enquanto a noite se esvai.

Vinho que agora bebemos. 


Arquitetura



Morar numa casa contigo.
Assim, quatro paredes, janelas.
Alguns Renoirs e Van Goghs e xaxins nos cantos.

A rede na varanda fresca embalando o sábado.
E um gato vivendo sorrateiramente aos nossos pés.

Luminoso será o banheiro, grande como um quarto e o quarto,
aconchego de brincadeiras vinte e quatro horas.

Uma casa para morar contigo.
Descobrindo mais amor em cada peça de barro.

E um jardim da cor de seus olhos.

Fel



Nuvens negras pairam sobre os nossos ombros.
Fim da inocência, sustos nas esquinas.
A vida se trinca: - frágil bater de asas á procura do sol.

O mar não é mais aquele.
As pessoas nunca foram estas que tanto proclamamos em discursos humanistas.

Tudo está cientificamente provado.
Permanece a dilacerante decepção. 

Confessional



Já chorei hoje.
O mundo é pesado e seu sol de inverno não esquenta.
Queria deitar a cabeça em seu colo.
Dormir e acordar em um planeta menos nebuloso
[onde escrever fosse a saída mais fácil.

As costas doem. A máquina não faz parte de mim.
Procurei você hoje
pensando na liberdade que são seus braços na minha cintura.
Queria lhe beijar.

Um arremedo de paz.

Nosferatu



Há a necessidade de escrever a tua vida.
Algo que rasgue, dilacere e contenha as fendas eternas da paixão.

Tu te alimentas do sangue das idéias e arrancas força da dor.

Cravando os dentes no mundo,
sorves a matéria,
mastigas o invisível,
busca o carnal.

Tu, feito de séculos
de brumas e encantos.
Fetiches, animal. 

Ausências



E a casa ficou vazia...
Procurei teu sorriso pelos cantos, atrás das almofadas.
Logo eu que pouco a pouco perco a alegria
o sono,
intencionalmente
inconscientemente.

A cidade me ensina cenas amargas e às vezes penso na loucura
de te consumir em brigas, atenção e melodramas.
Logo eu que tanto lutei por ti!

Não posso te dar agora
nada além de paredes brancas,
plantas mortas e
falta de ar.
Diagnóstico


Sentada na soleira da porta,
pés tortos.
Na boca de biscoitos de chocolate, alegria.
Livro na mão,
coloridas rimas embalando os pensamentos.

Todos os passantes
espantavam-se.
Olhos soturnos e reprovadores interromperam a leitura.

É a inocência que choca as pessoas. 

Poema Chuvoso I



A chuva caía e pensei:
há quanto tempo não chovia!...
há quanto tempo não lhe via!...
Do jeito que gostava de ver:
olhando para mim.
Colando sua mão na minha pele e falando,
entre outras coisas,
do meu cheiro de mulher.


Caçador de andróides



Este ambiente tão artificial...
‘deveria haver um jardim japonês lá atrás’
Uma janela cumpriria o seu papel
com a abertura para o mundo lá fora.
Mais quente
mais frio
também seco, com seus redemoinhos desérticos
porém, humano.
Digno de ser visto e reverenciado.

Estamos sempre desbotando a vida.
A tentativa desesperada de desconhecer os outros.
Automatizar é a palavra de ordem fora das fábricas.

Viver com este gosto de ferro e plástico na boca.


Carta de amor ridícula


Pensando alto,
quem vai me arrumar por dentro?
preciso estar sozinha nesta confusão?
Imagino o trim do telefone,
numa carência louca.

Danço em frente ao espelho e elaboro diálogos lunáticos
ao som de músicas que trazem seu cheiro.

Preciso de você aqui.
Abstrair.
Que tal um volta?
Eu tô afim de agarrar você.
Um beijo no meio da rua e depois o crime:
tomar banho de você.

Eu te amo e é só isso.
Para que se matar deste jeito?
Você tão sozinho aí...
Eu tão sozinha aqui...
Que tal uma volta pra mim?


Sessão da tarde



Flor rosa, lilás,
Bordô,
tesão.

Palavra na boca,
boca no corpo,
corpo no chão
Nu.
Despido de pudores.

O limite da sala fria se aquece com a presença de outra primavera.

Calor, suor de sol da tarde.
Tarde?
Nada.
Desejo tem qualquer hora para se apresentar.

Anjos decaídos



Sonhado até que eu tenho demais.
Há vinte anos espero por uma boa notícia.
Duas ou três pessoas me fazem companhia
nesta marginalidade ótica de que querer o amor intransitivo,
a suave e incorrigível dignidade.

Assim percebo o mundo.
Sou sozinha e triste.
Apenas duas ou três almas ansiosas,
voluntárias,
seguem comigo.

Nos bancos dos shoppings estamos sentados.
Falamos dos sonhos, livros e justiça.
Aguardamos os próximos anos
[praticando o laborioso ofício dos homens de boa vontade.





Profiteroles

ao Bernardo


Venerado amor que se constrói ao meio-dia.
Desafia o trânsito, o tempo, o caos e se encontra
para almoçar amenidades, planos e problemas.

Venerado amor.
Prato-feito de carinho e diálogo,
receita de vida a dois sem temor ou mentiras.

Ao meio-dia o sentimento se revela e é quase sempre saboroso.
Rica comida saciando corpo e espírito.
Rotina deste venerado amor. 


Ouvindo Caetano



Cassiana, Cassi Jones, Cassiel...
Anja sobre Berlim, Brasília ou Cuiabá.
Você alegra.
Carrega a força azul em seus olhos curiosos.
Gostei de você frágil e fortaleza,
paradoxal.
(usando disfarces negros para esconder seu cabelo anjo)

Você, miragem.
Deixa suas asas em casa e passeia angelicamente entre os humanos.
Mas não há engano.
É que sou bruxa
e lhe conheço muito bem,
meu bem. 


Ceci


A foto é pequena.
Portanto, não lhe representa.
Já senti uma saudade.
Usei o telefone.
Já senti uma saudade.
Usei uma canção.
Agora o porta-retrato sobre a escrivaninha.

Mas nada me consola.
... que seus olhos verdes além de belos são tudo o mais.
Seus olhos quando choram são iguais aos meus, percebe?
Você caiu no meio, bem aqui
na parte vermelha, pulsante.
Visceral.

Neném



Eu o vi numa manhã imprevista.
Algumas pessoas anunciaram a chuva.
Tive a certeza de que ainda o amava.
Não daquela forma febril e irresponsável, mas com dor no peito.

Porque o amor antigo é teimoso.
Sempre faz questão de provar que não morreu.
E eu sentindo um nó em todas as artérias e veias
                                                                                              [olhando a fotografia da paixão perdida.

É estranho uma pessoa entrar na vida da gente e deixar seus modos, cabelos...
Bom saber que o amo sem medo.
Com a doçura do tempo que se esgotou em tempo.

Eu o vi numa manhã imprevista e a semana choveu de alegria. 

Inventário


Minhas canetas:
todas quebradas, sem tampas, roídas.
São o reflexo da dor de parir o texto, o roteiro, o compasso
mordido, suado e partido.

As grossas lentes:
arranhadas, empenadas, sofridas.
São as marcas das leituras noturnas, herança de meu pai.

Minhas palavras:
parcas, tortas, pobres, doridas.
São típicas. Mortas provas.

Rústico desejo de poetizar.
Das loucas idéias


As pessoas ainda me contam:
‘votei em fulano por questões profissionais’.
Como se a cara feia já não fosse suficiente para mostrar
o asco diante de coisas mesquinhas
que não ultrapassam os limites do eu votei, eu fiz, eu quis.

Se estes mesmos fulanos parassem para ver o lixo que são.

Enquanto a careta não resolve, tiramos fotos dos sobrinhos
panfletando pelas ruas, casas de parentes e ambientes profissionais.
Amando e sendo odiados por ver o lixo que são.

A Terra é azul.
Mas outro dia vamos adorná-la de adereços fantásticos.
Com espaços pretos, vermelhos, sóis, círculos e outras geometrias.
Vamos criar uma espécie diferente:
um ser humano. 

Autógrafo às seis e meia


para Adélia Prado


Deixa eu lhe dar um beijo, conhecer sua letra.
Quando peguei em suas mãos experimentei a fortaleza.
Tremi horas.
E acreditar que eu nem sabia quem era o Jonathan!

Existo para sentir.
Colocar seus poemas em cartões de Natal, na minha vida e nas almas que amo.
Ainda bem que pude confessar
‘sua poesia me comove’!

Não tive medo de ser óbvia e de chorar. 

Calvário



Às 5:30 acordaram com o despertador.
Sonolentos, alcançaram o banheiro.
Às 6:00 sentaram à mesa para compartilhar
café amargo- caras amargas
pão amanhecido- ilusões amanhecidas
margarina barata- vidas baratas.

Atrasados, largaram o conjugado.
Exaustos, subiram a ladeira.
Suados, tomaram o metrô.

Às 7:00 o ônibus. De pé todo o trajeto.
Mortos, cruzaram os portões da fábrica.
Dois como tantos...
emudecidos, pobres, vítimas da maldade.

Ausentes do próprio destino.
Primeiros Passos


Ele entrou na sala,
componentes da mesma rotina.
Ambos traçaram um pacto tácito ali.
Ritual bonito.

Ele a olha.
Máquina fotográfica registrando seu embaraço.
Porque seus olhos profundos e inquietos são agentes da paixão.

Ela sabe amar a cumplicidade do silêncio, mas quando sua voz
(a voz dele)
pronuncia seu nome
(o nome dela)
a corrente elétrica atravessa o corpo dos dois.

Tudo, de súbito aconteceu.
Ele lhe mostrou as portas da alma.
Ela entrou sem pedir licença.


Bolero


É nas segundas que sinto saudade de ti.
Na preparação do jantar sozinha,
mastigando pensamentos confusos na cozinha fria e bagunçada.

É quando entro em meu quarto que sinto saudade de ti.
Arrumando roupas espalhadas como as tuas que também já estiveram assim
tantas...

É nua na cama que sinto saudade de ti.
Na doce preguiça de não ler não escrever ou na poesia que pretendo compor.

É quando consulto minha agenda e repito os pequenos rituais da vida que sinto saudade de ti.
E quando estou cansada, à beira do precipício também sinto saudade de ti.
Porque acompanhar teus gestos distraídos acalma meu olhar perdido...

Todo dia sinto saudade de ti.

Poema Chuvoso II



Uma janela para admirar a chuva.
Para lembrar daqueles tempos molhados.
Estava nua
estava sua
grudados.

A gente não sabia se era água, suor ou saliva.
Bastava apenas o entendimento de que era único ficar junto.

Depois daqueles dias
[nós nos misturamos tantas vezes
Eu não sei mais o que pode ser eu só, só eu, sozinha.



À luz da manhã



Triste e gripada.
Situação lacrimosa em abundância.
Isso, acenda este incenso.
Vamos ver a aurora ao som de Bethânia
‘brotar do impossível chão’
espirro uma vez ou outra.
Chorei até ficar com o nariz vermelho.
Me dá um abraço antes
que eu coloque meu jeans mais surrado,
a camiseta branca mais pálida

não passo batom na vã tentativa de mostrar ao mundo que sofro.



De cipó em cipó



Vi você através do vidro que lhe encerrava naquele laboratório.
Observava como se observa os bebês. Com  orgulho besta,
orgulho bom.
Você acenou, veio pra bem perto e ganhei coragem de encará-lo pelas lentes dos nossos óculos.
Sempre existirá uma coisa entre a gente. Sempre.

Você fez que não, sutilmente fingido, indiferente.
Mas eu também fingia
Brincava para esconder o desejo de lhe colocar no colo,
como se coloca os bebês.

Ameacei não mais voltar.
Agora eu não brincava e você não notou todos os vidros trincados, partidos.
Tremendo desconserto diante da prepotência.
Acabava de me transformar na pessoa mais ilógica e surreal da minha vida.

Não vejo mais sentido.
Deixo você chorando no quarto escuro como se deixa os bebês.
Nunca mais vou lhe buscar.



Página 57


Brasília, dezenove de maio.
Sábado frio na história de uma grande transformação
maluca, acidental.

Carta dentro do coração
cobertor.
Lembrança de olhos
eternas estrelas marrons brilhando no azul.

Blusa que comprei quando perdi a fome.
Encontrei o menino surpresa em algum quebra-molas da cidade.
‘ele te telefonou?’
Acontece cada uma e o amor...
Quer lanchar?
Quero a cor da noite num filme e na sombra do abraço.
Tanta saudade.

Quero você, sem dúvida.
Não sei por quanto tempo e nem se me fará tão bem.
E daí?



Felizes



Sim, a gente já bebeu sangue.
Vampirizamo-nos.
Os cortes volta e meia voltam.
Nos consome: amor.

A gente faz sorvete e lava a louça.
Mistura à pele o leite moça.
A gente quer morar junto
[a gente não presta mesmo.

Suas fotos, seu sorriso na minha boca.
Minhas palavras, minha mão na sua nuca.
Se segura, você é meu!

A gente quer viver junto.
A gente não tem vergonha
a gente se merece. 




Plano Piloto

Tinha ganas de olhar a  vida do alto
como se pudesse me distanciar de sentimentos mal compreendidos.
Da janela observo os carros riscando o vento.
Suas luzes me confundem
                                               [ o brilho néon na velocidade da luz.

Hoje miro a paisagem do terceiro andar.
A vida do alto é simplesmente a mesma vida furtiva.
A perspectiva é que muda.



O Ventre e o Óvulo

Pacientemente gero a expectativa de ter a cria nos braços.

Um momento assim não começa
em sua concretização efetiva, afetiva.
Ele nasce muito antes, na ansiosa possibilidade de ser.
Na espera às vezes tranqüila,
vezes dilacerante de decidir.
De parir a vontade,
este motor de partida.

Minha cria
já posso senti-la quando de mim aflora o desejo de tê-la no colo.

A emoção toma conta da mulher que se concede o poder,
o cio.
Intenso prazer de esperar,
engravidar.




A gridoce

Mando para casa alguns amigos.
Falta minha, falta deles
Falta de ninguém.

Não sinto falta.
As pessoas são excessivamente plásticas, flácidas, sádicas.


Este lugar em que me sento é pura opressão.
Desejo de sair xingando meio mundo e ficar impune.
A cada dia menos gente ao redor...
sozinha persigo a vida.

Solidão é a saída  quando se percebe a armadilha.


Traças

O céu transbordava bicolores mensagens
enquanto um cansaço de tudo espreitava o fim de tarde.
Os comentários sempre maculados de hipocrisia
fazem chorar a janela da alma.

Como é duro existir dia após dia...
ficar invisível e saltar do quinto andar fazem parte dos planos imediatos.

A angústia habita em mim.
Veneno  lento morno, até suave.
Companheira dos áridos caminhos de viver e ser.





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