A ilha dos gatos penados





Cananeia podia ser lá no deserto, terras dos hebreus. Areias escaldantes que somem com o peso dos pés. Mas as areias desta Cananeia são molhadas pelas espumas do mar do Atlântico. Do outro lado do mundo árido, a umidade tropical sopra o verão. 

A Cananeia do hemisfério sul está num país-continente onde as ilhas são instigante exceção. Boiam na imaginação como mistérios e tesouros. As duas irmãs conhecem esse sentimento e anseiam pela viagem de férias. 

O pai não tem varão, sua imagem e semelhança. Mas não se faz de rogado. Meninas também podem pescar. Bastam mãos, olhos e certa dose de minimalismo. Pronto, aportavam em Cananeia. Sem esforço tuaregue. Apenas as tradicionais paradas para abastecer. Esvaziar. Xixi. 

Enfim os pés imersos no azul da água. Os caquinhos de areia debaixo das unhas. O cheiro de sal. A ilha está lá à espreita, depois da arrebentação. Hoje, só pensamento. Amanhã, possibilidade. Vertigem. Miragem. Uma irmã queria muito. A outra, receio. 

– Então: você está pronta para ir com o pai ou ainda tá com medo? – implica Maria Luísa enquanto tira a franja dos olhos de Cecília. 

Maria Luísa era menina-moleca. Fuçava o avesso das coisas. Abria as bonecas ao invés de niná-las. Era quem ficava do lado do pai montando barcos de pesca. O pai gostava de inventar. Maria Luísa de apreender seus inventos. Cecília-oposta era levada a reboque no mundo de maquinações dos dois. 

– Mas aquela ilha é assombrada, Malu. Não acredito que o pai vai montar acampamento naquele lugar bem no dia das bruxas! 

Ora se não ia. A excitação já estava alta no céu, como a lua que nasceu gorda, grávida, cheia. Os peixes doidinhos pulando direto para a rede povoaram o sonho do pai, escorrendo para a cabeça da filha mais velha. Sombra. 

Manhã pulou da cama. A mãe não entendia toda aquela fuzarca. Preferia a mansidão da praia. Os livros. Malu e o pai enchiam as mochilas com os mantimentos. Barraca, fogareiro, varas, molinetes. Cecília permanecia encolhida na esperança de ser esquecida. Deus, Deus, me faça ficar invisível agora! 

– Bora, Cila!!!! Sempre atrasando a gente! Não esquece sua chupeta, zombou Maria Luísa. Ela não entendia os medos da irmã, mas não conseguia viver sem a caçula, sua pupila de olhos verdes. 

Cecília fazia bico só que não tinha coragem de dizer não. E se perdesse uma grande aventura? Maria Luísa ia cuidar dela, tinha certeza. O pai ficaria absorto pela pesca, porém Malu e ela formavam uma dupla de exploradoras para ninguém botar defeito. 

O barco do pai era um Frankenstein em constante reformulação. A cada janeiro, um remendo, uma novidade. Isopor? Confere. Barraca? Confere. Varas? Água? 

– Cadê o meu chocolate? – pergunta Cecília num sopro inseguro. 
– Ué, se você não colocou na sua mochila não é problema meu, né? – exaspera-se Malu. 

Cecília fuça nas roupas socadas na bolsa rosa estampada de flores. Encontra uma barra de crunch e se sente protegida dos perigos além-mar. 

A ilha está lá. A silhueta translúcida. O pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Cecília recorda a prova do segundo ano. A questão perguntava: o que é ilha? Quando tudo o que Cecília gostaria era de se esquecer dos pavores do verão passado. 

São 40 minutos varando o mar. O sol arde nos olhos a caminho da Ilha do Cardoso. Desembarcam nas areias convidativas. Poucas pessoas se aventuram por ali durante o dia. À noite, o deserto da Cananeia hebraica se transfere para lá. Não há viva alma. O mesmo não se pode dizer das penadas, que ali dizem rondar. 

Desconfiada, Cecília abandona o barco. O pai já está procurando um lugar para montar acampamento. A melhor posição para a barraca segundo os pontos cardeais. Malu pega as tranqueiras. Cecília aperta sua bolsa contra o peito e engole em seco. Devia ter ficado com a mãe. Burra! Burra! Quem mandou? 

O dia passa rápido entre banhos de mar, castelos. O almoço no fogareiro: macarrão, salsicha, ervilha e milho de lata. O pai vai passando as coordenadas. A hora da pescaria se aproxima no horizonte. O sol cai jogando borrifos de tinta laranja sobre a vegetação da ilha. A mata fechada começa a ganhar os contornos animados que tanto apavoram a imaginação de Cecília. 

Os três se sentam na pedra roliça e jogam suas linhas... Minhocas fresquinhas são a isca perfeita para a pesca do dourado. 

– Pescar é muito chato! – reclama Cecília. 
– Ah, deixa de ser mimada, Cila! Você quis vir, agora aguenta, tá bom? – manda a primogênita. 

A concentração exigida pela atividade não é o forte de Cecília, que desvia os olhos do mar para o fundo da ilha. E de lá percebe brilhos fugazes clareando a escuridão do mato. 

– Eu vi alguma coisa brilhante ali! – berra. 
– Xiiiiiiiii! Silêncio, Cecília, assim você vai espantar os peixes! – bronqueia o pai. 
– Vagalumes, Cila, fique tranquila! – acalenta Maria Luísa. 
– Ei, ei, fisgou! Peguei um!! – Malu começa a rodar o molinete. O primeiro peixe da noite sai da água em polvorosa. Todavia, Malu percebe que a irmã está morta de tédio e decide deixar o pai cuidar da pescaria sozinho. 

– Vamos pegar nossas lanternas para procurar tatuís? – sugere para a irmã, que prontamente larga a vara, pega na mão de Malu e a puxa para a barraca. 
– Pega o casaco que já está esfriando, Cila. – Malu não quer que a irmã se resfrie. Ela tem pena de Cecília, sempre tão frágil. 

Cecília está logo atrás da irmã, protegida pelo seu corpo mais atlético e mais esguio. A caçada de tatuís começa! Malu enfia as mãos na areia com vigor enquanto Cecília carrega o balde. De cócoras, os tatuís vão caindo na armadilha de dedos de Maria Luísa. 

– Presta atenção, Cila, ilumina aqui ó! – mas Cecília está apavorada com os barulhos da mata que não são abafados pelas ondas. 
– Malu, tem alguma coisa esquisita ali atrás!!! – sussurra Cecília, paralisada. 

Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaau!!! 

As duas irmãs pulam de susto. De repente se dão conta que já se afastaram bastante do ponto de pesca do pai e também do acampamento. 

– O que foi isso, Malu? – Cecília treme. Malu passa o braço em seus ombros para tentar acalmá-la. 
– Pareceu um gato, Cila. Um miado de gato. Mas de onde vem? 

Miaaaaaaaaaaaaaaaaau!! Meauauauaau! Uammmiaum!!! 

Os sons se multiplicam. As meninas focam suas lanternas para a mata. Não conseguem ver nada além de pontos brilhantes ofuscados pela luz. 

– Mas no ano passado não tinha esse barulho!!!! Só tinha vultos esquisitos voando sobre as árvores, Malu!! Quero ir embora!!! Eu disse que essa ilha era mal assombrada!!!! 

– Nada de histeria, Cila. São gatos. Esse barulho é de um bando de gatos, pode apostar! 
– Não me interessa, vamos embora agora! – implorou a menina. 
– Não. Vamos investigar!! – decidiu a dona do pedaço. 
– Ah não, não e não!! Eu vou voltar para o pai agora, Malu! 
– Vai nada! Venha aqui! Maria Luísa puxou o braço de Cecília com força e arrastou a menina rumo à barulhada. 

Miaeuuuuuuuuuuuuuuuuu! Maiuaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Os uivos estavam mais intensos, desconexos e próximos. Numa trilha aberta na mata, elas avistaram a fila de gatos. 

– Não disse que era um bando de gatos, sua boba! 

– Aiiiiiiiiiiiiiii! São monstros, monstros, Malu, me larga! Me solta!! – debate-se Cecília. 

Maria Luísa foca melhor a lanterna para tentar compreender a reação exagerada da irmã e quase cai para trás de tanto espanto. Eram gatos, mas não eram. Mutações. Gatos com cabeças minúsculas, sem orelhas, com dois rabos, pernetas, cotós, com um buraco no lugar dos olhos. Despelados. 

Era um verdadeiro circo de horrores caminhando na direção das irmãs. Os bichos emitiam sons arrepiantes. Súplicas ou ameaças? 

– Corre, Malu! Corre! 
– Não, Cila. Precisamos saber... 
– Você está louca, eu não quero saber de nada. Nunca mais ponho os pés nessa ilha!!, esperneia Cecília. 

De repente, os gatos fecham o cerco. As irmãs estão abraçadas no meio da roda. Cecília, escondendo o rosto, grita loucamente. Maria Luísa tenta controlar a situação e utiliza a lanterna para manter os bichos afastados. Parece que o faixo de luz incomoda os bichanos sobremaneira. 

O líder do bando toma a iniciativa e investe contra as meninas. Ele é grande, parece uma pequena onça. Entretanto é caolho e manco. Indescritivelmente horrendo. 

Maria Luísa está pronta para arremessar a lanterna na cabeça do bichano, mas ao chegar perto das meninas o imenso gato estropiado apenas cheira os pés dela. 

Cecília não para de gritar, o que faz os outros gatos manterem distância. 

– Calma, Cila! Calma!! Assim você vai me deixar maluca!!! Veja, eles só querem nos conhecer... 

Cecília tenta tirar as mãos dos olhos enquanto o líder felino começa a cheirar suas pernas. 

– Argh, sai daqui! Xô, socorro!! – Cecília chuta o gato com violência. Ele solta um gemido rouco e desapontado, fugindo para o lado. Os demais gatos também se afastam. 
– Não, não, não vão embora... Chanim, Chanim, chanim... Eu tenho um pedaço de pão aqui no bolso, venha, coma! – cale a boca agora, rosnou Maria Luísa para Cecília. 

O gato volta a se aproximar, rouba o pedaço de pão das mãos de Maria Luísa e retorna para o escuro da mata seguido de seu bando. Em poucos segundos eles desaparecem na trilha que vai dar no coração das trevas. 

– Maria Luísa, Cecília, onde estão vocês? – chama o pai, que vem seguindo o facho da lanterna. 

As duas irmãs abraçadas são captadas pela luz. O pai se assusta com o olhar aterrorizado da filha menor. 

– O que aconteceu? Você está branca como uma vela, minha filha! Parece que viu um fantasma... 

Cecília corre para o abraço do pai. Seu corpo treme e chacoalha. Ela chora. 

– Papai, papai, era um bando de gatos mutantes! Eu juro. Eles saíram de dentro da mata da mesma maneira que voltaram. Eram horripilantes, papai! Eram impressionantes! Eu quase agarrei um para você ver. Para levar para o continente, blá, blá, blá... Afoita, Maria Luísa atropelava as palavras como se tivesse feito a maior descoberta da Ciência. 

– Gatos? Que gatos? Vocês duas tomaram muito sol na cabeça! Acho que estão com insolação! Ou fome ou sono. Nunca ouvi falar de gatos na Ilha do Cardoso. Não mora ninguém por aqui. Não seriam micos? Pássaros? 
– Não, eram gatos. Gatos deformados, maltratados, penados. Isso, gatos penados – insistiu Maria Luísa. 
– Ah, já entendi. Penados... Hum, isso é história sua só para apavorar a sua irmã, não é Maria Luísa? Igual ao ano passado, quando ela disse ter visto vultos voando sobre as árvores. 
– Mas eu vi sim, papai – choramingou Cecília, desenterrando a cabeça do peito do pai. 
– Vamos, está tarde e vocês precisam comer. Tem peixe assando na fogueira... 

O pai puxou as duas pelas mãos e deu as costas para a mata. Maria Luísa se virou para o escuro e ainda teve tempo de vislumbrar pares de olhos faiscando no breu. 



Comentários

  1. Oi Luciana,

    Aqui é o Gustavo, filho do Luis Guilherme. Eu tô querendo dizer que o livro pra mim ta ótimo. Quero saber se vai ter continuação e se tiver
    pode botar meu nome.
    Os machucados dos gatos poderiam ser feitos por caranguejos,gaivotas e urubus em brigas pelos peixes.

    ASS:Gustavo

    PS:Como vai o Tomás e o Rômulo?

    ResponderExcluir
  2. Oi Luciana,

    aqui é o Luís. Também gostei da história. Gostaria de sugerir algumas coisas que você poderia considerar se achar interessante:
    antigamente, na Ilha do Cardoso, os piratas franceses se abrigavam para caçar baleias e depois derretiam a gordura em caldeirões (tachos)de cobre que ainda existem por lá, meio enterrados nos escombros dos casarões de pedra.

    Também tem uns pedaços de louça francesa. Mas a
    Ilha é deserta atualmente. Então poderia dizer que os gatos descendem de gatos que foram esquecidos na Ilha pelos piratas franceses.

    Abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Rafael Silva Sauro,

      tem certeza que você é mesmo o Gustavo??? :)

      Muito obrigada pelos comentários. Adorei! Eu li ontem a historinha para o Rômulo e para o Tomás. Eles também gostaram e ficaram até assustados, principalmente o Romulito...

      Eles também ficaram pensando em como os gatos foram machucados ou se eles nasceram daquele jeito. Gostei das suas sugestões, Gustavo!

      Quem sabe eu escrevo mesmo uma continuação, contando como os gatos chegaram à ilha com os franceses...

      Eu nem sabia dessa história. Só me lembrava que havia gatos, só isso. O resto eu inventei. Obrigada, Luís. Muito interessante esse complemento!

      Tomás e Rômulo ficaram com vontade de conhecer a tal Cananeia...

      Quem sabe um dia a gente vai lá, todo mundo junto? Que tal?

      Beijão e saudades!!!

      Lulupisces.

      Excluir
  3. Luciana,

    Gostei da narrativa pulsante, com pontuação frequente, das sinestesias....
    Parabéns!
    Beijos,

    Carmem.

    ResponderExcluir
  4. Sua pegada às vezes me lembra o melhor da coleção vagalume. Capacidade de prender a atenção do leitor. Um certo olhar inaugural pras coisas. Poderia escrever sempre pra jovens também.

    André Ricardo Aguiar

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos