Como era gostoso o meu ECT




Estou terminando “Orgulho e Preconceito” e já me sinto outra vez órfã. Ser órfã é sentimento que eu deveria dominar, mas não posso me furtar de experimentar a melancólica nostalgia de não mais existir num mundo de cartas. 

A obra de Jane Austen é permeada de missivas. Dramas se constroem e se solucionam por meio das longas explanações ou breves bilhetes trocados entre as personagens. E eu, que nasci na época errada e sempre gostei de papéis, envelopes e selos, me vi morrendo de saudades dos tempos da minha vida epistolar. 

Peixinha sempre nadando contra a corrente, nunca abri mão de escrever, de próprio punho e letra nada bonita, muitas cartas. Mesmo quando não era correspondida na mesma medida. Fato corriqueiro, pois a minha geração já não sentia todo esse apreço pelas mal traçadas linhas há uns 30 anos. 

Comecei a tomar gosto pelas cartas aos 11,12 anos. Era o meu ingresso no universo da língua inglesa e o curso incluía os chamados “pen friends”, ou seja, amigos da caneta. Lá estava eu, semanalmente, trocando informações com meninas do outro lado do mundo. Uma das correspondentes vinha da África do Sul; outra da Austrália e a terceira, se não me falha a memória, de algum lugar da Europa. 

Que diversão! Comecei a perceber que o planeta era bem maior e mais diverso do que o meu quintal. Era o começo da minha globalização. Recebia lindos postais desses países tão distantes da minha realidade provinciana. Retribuía com o maior carinho, escolhendo lindos cenários da futurista Brasília. 

Mamãe não achava lá muita graça em sustentar meu hobby semanal e não via grande valia nessa delicada operação de nutrir amizades transnacionais. Tudo custava dinheiro e ela era de espírito pragmático e econômico, não sonhadora e carente como a filha caçula. 

Mas eu acabava conseguindo dobrar a velha e corria para a fila dos correios mais próximo, aliás, não tão perto assim de casa. Tinha de esperar os dias das aulas na Cultura Inglesa para selar e enviar meus garranchos em inglês na agência do ECT da 508 sul. Meu coração ia junto, imaginando a alegria dos olhos das meninas abrindo um envelope que acabara de chegar de uma terra estranha, exótica e desconhecida do Terceiro Mundo. 

Depois, uma grande amiga de infância se mudou para Juiz de Fora/MG. Era a primeira vez que eu perdia uma amiga para outra cidade. O prazer da troca de correspondência se consolidou. E aí veio o amigo cancioneiro, que ganhou esse apelido devido aos poemas enviados e recebidos via postal Campinas/SP-Brasília. 

Parecia que o destino me reservava uma vida entre cartas. Conheci o futuro marido alguns meses antes da sua partida para, olha a coincidência telúrica, Campinas. A cidade estava marcada para fazer parte da minha rotina missivista. Foram anos de juras, fogo e paixão em páginas, páginas e mais páginas cheias de coraçõezinhos de amor ridículo. Sofreguidão e sofrimento, saudades e sonhos. Deu certo. 

Há pouco tempo, vi um espetáculo teatral baseado na troca de cartas entre Drummond e a filha, Maria Julieta. Foi a coroação deste sentimento de gratidão e devoção pelas correspondências que eu sempre tive. O maior poeta brasileiro e sua herdeira em talento e sensibilidade honraram com primor a importância da preservação da memória e dos afetos expressos a distância. 

Hoje, tento manter a tradição. Para tanto, me sirvo do primo em Goiânia, da amiga em Juiz de Fora, das amizades conquistadas nos Estados Unidos... Faço dos e.mails, cartas. Mas não abro mão de enviar algo feito à mão de vez em quando, como cartões de Natal, de aniversário, de boa sorte... Ainda que não sejam cartas propriamente ditas, são exemplares em extinção da afável arte de se conectar. 

* Sugestão de leitura: "Cartas do Coração - Uma antologia do amor", organização Elisabeth Orsini. Editora Rocco.

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Comentários

  1. Saudades mesmo Lu, do tempo das cartas!Este texto falou direto ao meu coração, me trouxe uma nostalgia gostosa, a lembrança de um tempo em que a gente reservava um momento para se corresponder com aquelas pessoas amigas, parentes que moravam longe, colocando em nossa escrita toda emoção, percebida e sentida, na caneta, no papel, pela energia de enviá-la e recebê-la.Ter notícias,trocar confidências...hoje temos o email, acho uma forma prática de comunicação, mas fria.
    Aproveito para dizer que amei os poemas postados anteriormente...bjão.Namastê!
    Cynthia

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    Respostas

    1. Agradecida, querida superteacher!

      Não imaginava que meus poemas juvenis fariam sucesso. Bom saber que tocaram minhas leitoras mais fiéis!

      Abraços fraternos, Namastê!

      Lulupisces.

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  2. Cartas!!!

    Prá quem nunca viu uma:

    Escreve a cidade e data por extenso...

    E põe assim embaixo:
    Querida (o) fulana (o),

    Aí abre o coração, a alma...

    E no fim se despede com: saudades, coraçõezinhos e grandes bocas vermelhas sorridentes...

    Não esqueça do remetente (que é você, tá? Não confunda!) e do destinatário (que é o seu amigo do peito!)

    Que bom poder contribuir com o seu prazer em enviar missivas! Compartilho!

    Bjs, my pen friend!
    Patty

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