Imprescindível


“Hasta dónde debemos practicar las verdades? Hasta donde sabemos?
Sílvio Rodriguez

Algumas obsessões assombram como fantasmas. Mas não apavoram, só retornam dioturnamente e a gente toma chá com elas, como fazia Quintana com seus amigos espectrais. Entre as minhas fixações preferidas está a minha amiga íntima música. Musa avassaladora. Espantoso saber que algumas pessoas não se importam de ficar sem ouvir canção alguma ao longo do dia. Incompreensível.

Queria com muita força tocar um instrumento. Tentei o violão, mas os meus amados são o piano e o violoncelo. Não consegui nada além de decorar algumas cifras e angariar um paquera quando, aos 14 anos, voltava de ônibus após mais uma aula “caminhando e cantando e seguindo a canção”. Carregava o trambolhinho posando de cantora folk e o garoto bonito de olhos verdes, Alexandre, me perguntou se poderia acompanhar a donzela aqui até em casa. Hoje, oferta como essa seria, no mínimo, assustadora. Porém, naqueles anos 80, na Brasília na transição de roça para cidade, violência não fazia parte da rotina.

Tais reminiscências nostálgicas me levam a um outro tempo de melancolia e inocência não muito longe na contagem histórica, mas há anos luz de distância em viabilidade: a época na qual boa parte das pessoas que habitava este mundão de Deus acreditou ser possível reformar o mundo e a política com base em ideologias 100% humanas. Ponto. Sem leis de mercado ou fundos de pensão.

Tempos utópicos e aguerridos que o disco de Silvio Rodriguez traz à tona, mexendo com nossa sensibilidade. As letras do cubano sinônimo de consciência social, ícone da música desta ilha emblemática, levam a gente a habitar os cernes da revolução socialista. Teletransportada para a Playa Girón, vestindo minha boina, escoltando Che Guevara.

Costumava brincar com a minha mãe: "Sorte sua eu ter nascido depois do fim da luta armada. Provavelmente estaria na lista dos desaparecidos, mamis". Não que eu seja política, afiliada de partidos, nada disso. Aliás, tenho preguiça de me sentir presa a qualquer gueto, seja ele de esquerda, direita ou anarquista. O que me seduz é o ideal. A crença na possibilidade de mudança. E o tal do sonho a realizar, empunhando o jargão do “mundo mais justo e solidário”.

É por isso que o disco Días y Flores (1975), lançado durante a ditadura militar aqui e a Guerra Fria que isolou Cuba do resto das nações, me comove de forma profunda. Não há como não chorar ouvindo aquelas canções de letras intensas e valores nobres. Sílvio Rodriguez canta os “hombres de poca niñez”. Onde foram parar estes homens? É possível imaginar “compañeros de Historia tomando em cuenta lo implacable que deve ser la verdad” vislumbrando o trabalho dos nossos congressistas? Da nossa classe média alienada em seus delírios de consumo?

Sigo ouvindo no carro estas canções pungentes, cantarolando no meu espanhol enferrujado, as belas melodias do Chico Buarque hispânico, mas tenho que me concentrar em manter os vidros fechados no semáforo com medo de sofrer sequestro-relâmpago. “Allí yo tuve um ódio, uma vergüenza, niños mendigos de la madrugada...”

A revolução cubana completou 50 anos. Hoje a ilha está à deriva da História. Ouvir Sílvio Rodriguez me faz refletir em qual parte do roteiro as pessoas perderam o bonde das melhores intenções. Se era só discurso, pelo menos me parecia mais digno de ser ouvido. Fidel Castro acabou pisoteando seus próprios ideais. Entretanto, nenhuma atitude ditatorial deveria ter nos desviado do caminho no qual acumular menos vale mais.

Ninguém em sã consciência admitiria em público que a felicidade só pode ser possível numa cobertura de 300 metros. Comprar carros que valem um apartamento todos os anos e fazer festinhas infantis opulentas e pateticamente pasteurizadas estariam foram de cogitação. Era legal aquela sociedade em que símbolos de ostentação pegavam mal. “Tengo zapatos, tengo camisa, tengo sombrero, tengo hasta risa. Mas si tuviera em mi ropero sólo las perchas vacías, la vergüenza tendría. A que más?”

E para fechar essa nostalgia musical de qualidade ímpar, uma obra-prima de Renato Russo, que também tinha lá sua porção Sílvio Rodriguez: idealista e contundente. Adoooooorooooooo!!!

http://letras.terra.com.br/legiao-urbana/46967/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos