(Descom) passado

Naquela noite,
Suzana estava mais
 W3 do que nunca
toda eixosa
cheia de L2
Suzana, 
vai ser superquadra assim
 lá na minha cama

(Nicolas Behr)

Brasília, 26 de dezembro. Num dèjá vú, me pego pedalando pela W4 e W5 da minha adolescência. Os carros minguados não oferecem perigo. Seres viventes sou eu, um cachorro sarnento, pedestres esparsos. Na bicicleta estou. Liberdade para mim é flanar sobre duas rodas. Coração batendo mais forte, arfando com o esforço que gira a roda da vida do pedal. 

Escolho a trilha (sonora) do dia e me lanço em passeio solo. Catar conchinhas numa praia deserta também tem o mesmo efeito libertador. Porém, na impossibilidade do mar, pedalar é preciso. 

Tenho saudade dessa minha cidade anterior. Aquela que abrigava as frases feitas: “O melhor hospital de Brasília é a ponte área”. “Brasília fica um deserto no fim de semana: todo mundo vai embora da capital na quinta-feira”. Bem, deputados, senadores e ministros do Judiciário continuam indo embora para o fimdesemana alhures (não fazem falta, nunca fizeram). Mas a minha cidade nunca mais ficou vazia. 

Brasília explodiu, inchou. Nem em grandes feriados a gente sente a paz de domingo sem sinal de vida. Na minha adolescência, as tardes da cidade eram infindáveis. Herbert Viana também guarda essa memória. O tempo sobrava, não havia nada para fazer além de “descer para baixo do bloco” (expressão genuinamente candanga) e ficar marasmando. A galera brincava de deitar no meio da rua porque o legal era desafiar os milhares de minutos sem um carro sequer surgir no horizonte. 

Sei que corro o risco de parecer saudosista em excesso. Uma velhinha rabugenta que só vê o cor de rosa no passado. Mas acho que Brasília era mais minha naquela época. Apesar de reclamar da falta de opções culturais, aquela cidade da década de setenta/oitenta tinha mais autenticidade. Tinha mais esquisitice. Tinha mais tranquilidade e brejeirice. 

As crianças brincavam nas quadras sem babás, sozinhas mesmo. Ralando e rolando mesmo. Uma caixa de geladeira vazia rendia muita invenção. Ir ao Jumbo era diversão garantida. Afinal, era o único supermercado que podia receber essa denominação naqueles áureos tempos de Cobal. Pedalar no vazio dava vazão a muita filosofia. 

O Parque da Cidade ainda se chamava Rogério Pithon Farias e todo mundo se indignava por isso. O Gilberto Salomão reunia tudo o que a adolescentada poderia querer de um lugar: azaração, sorvete e a febre dos patins de bota no Rollecenter. 

Sinto falta dessa cidade mais árida, mais cândida, mais solitária. Agora temos tudo do bom e do melhor, mas, é claro, também somos vítimas do mau e do pior: engarrafamentos, sujeira, filas quilométricas, especulação imobiliária, grilagem de terras, puxadinhos, miséria e sua face mais perversa: a violência cada dia mais perto da gente. Antes, o horror acontecia com desconhecidos. Hoje, todo mundo tem uma história triste para contar sobre um amigo ou parente. 

Pedalando na manhã em pleno ermo – deu até vontade de ficar em Brasília janeiro todo, só para ter um gostinho daquela cidade interiorana na qual nasci – cheguei a me preocupar um pouco. Será que não estou vacilando aqui sozinha? Mas depois relaxei, entrei no Parque da Cidade Sarah Kubitschek (subiu consideravelmente o nível da homenagem, mas seria melhor Parque da Cidade nu, cru e nosso), e ali vi outros candangos. Brasilienses a desfrutar dessa maravilha de espaço. Marco civilizatório. 

Taí: essa Brasília às vezes ainda faz meu coração bater descompassado no presente.

Comentários

  1. Querida Luzinha, você me fez lembrar de uma pergunta que eu fazia quando criança nos dias de domingo: "Vamo nu Phiton?" rsrsrs. E de quando eu ia ao zoológico e rolava na grama, saindo suja de terra e coçando as pernas como se tivesse pó de mico rs. Já na nossa adolescência, adorava passar os domingos de manhã na sua casa, tomando chá mate fumegando, assistindo ao globo rural e depois passeando nas ruas desertas, arborizadas, visitando a casa da Leila ou de algum amigo ou amiga sua daquelas entrequadras. Também quando eu saía do guará de ônibus e atravessava a W3 imensa até descer no ponto para a sua casa...rs. E você lá me esperando com seu sorriso acolhedor! Era bom demais, não?

    Beijos
    Patty

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  2. Lu, pintou um saudosismo gostoso lendo seu texto...saudades de descer e ficar debaixo do bloco(se bem que fazemos isso ainda, eu e o Caca, depois do nosso passeio com a Shakti, nossa cachorrinha),porém Brasilia era mais esquisita mesmo,deserta, muito diferente de outras cidades, e disso pinta também uma lembrança boa.Dias de chuva, dias de sol, dias de paz...e você sempre nos conduzindo à reflexões...muito bom!
    Beijo...Namastê!
    Cynthia

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  3. Ô se lembro, Pattygirl. Nossos domingos de Cine Atlântida!!! E o sorvete Romanoff da Praliné, que a gente economizava o mês todo para tomar? Era caro pra chuchu!!!!:)

    Ir até o Guará de ônibus era uma viagem gigantesca. Atravessar todo aquele Setor Gráfico meio mostrengo e desolado. Agora, tudo ali são prédios, o famoso Setor Sudoeste.

    Graças a Deus o biônico José Aparecido fez algo que prestou: criou o Parque da Cidade. Se não fosse essa ousadia, todo aquele verde também já havia virado asfalto e concreto. Ufa!

    Recordar é viver!!!:)

    Abreijos para as minhas mais fiéis comentadoras: Patty e Cynthia. Amores vocês!!

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  4. Oi, Lu!!!

    Nossa, adorei o cartão, mensagem e ilustração! Muito obrigada! Cheguei um pouquinho atrasada (estou longe de ser uma pessoa conectada!), mas quero te desejar um 2012 maravilhoso, com muita paz, saúde, amor e pessoas queridas ao seu lado, sempre.

    Um ano cheio de energia positiva, como a vida de ser!Beijo grande pra todos vocês!

    Tariana

    PS: finalmente, consegui entrar aqui no seu blog. Eu amei!!! Já até enviei um dos textos para um amigo meu)

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