Emoção sem limites

 

“Vou-me embora cantando
Com meu coração chorando
E vou deixar todo mundo
Valorizando a batucada”

(“Adeus Batucada”, na voz da Pequena Notável)

Tenho uma colega de trabalho que costuma dizer, em tom de ironia para eventos chatos: “foi uma emoção sem limites”. Na mesma linha, Mafalda exclama: “hoje entrei no mundo pela porta traseira” (do ônibus). Mas nada disso, na verdade, tem a ver com o que eu quero dizer. Só lembrei da expressão da minha colega de auditório porque, na história que conto a seguir, a emoção foi de, fato, sem limites.

O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) realizou, em maio de 2009, uma homenagem deliciosa ao centenário de Carmen Miranda. Em quatro shows de altíssima qualidade, a pequena notável foi merecidamente celebrada por quatro duplas de cantores não tão conhecidos do grande público, salvo Eduardo Dusek, que andava meio sumido, fazendo uma graninha em trabalhos de gosto duvidoso, como apresentar a premiação do prêmio Sesc de fotografia, artes plásticas e literatura 2008.

Eu sempre me amarrei na Carmen Miranda. Nem tanto pela música, mas pela atitude vanguardista com que aquela baixinha irreverente se firmou na vida. Ela foi a primeira drag queen do planeta e olha que ela era mulher, hein!!! Que figura carismática, resplandecente e inimitável Carmen conseguiu ser. E não venham dizer que alguém já chegou perto porque é mentira deslavada.

As apresentações também não deixaram por menos. Com personalidade, as quatro duplas deram conta do recado e trouxeram um pouco da leveza, irreverência e doçura de Carmen para as gerações que não tiveram a chance de conviver com o sucesso desta mulher que, durante décadas, foi sinônimo de Brasil para os gringos. 

E para enriquecer ainda mais as noites, pesquisadores e escritores renomados como Ruy Castro (que escreveu uma biografia sobre ela) e Sergio Cabral também participaram, recheando o espaço entre as músicas com detalhes pouco conhecidos da vida da intérprete “chicachicabunte”.

Nas minhas férias na Bahia, no início do ano, comprei uma camiseta com a Carmen Miranda estampada em foto de sorriso largo. Os balangandãs estão aplicados no turbante em forma de conchinhas, contas, estrelinhas... A imagem é em preto e branco; as miçangas, coloridas. Não sou tiete, mas me identifico com a ousadia da mulher espevitada, com a gana e vitalidade que emanam daqueles olhos grandes.

A tietagem explícita eu reservo para a cena que presenciei e que agora passo a narrar: no show da dupla Beatriz Faria e Marco Sacramento, que interpretaram os sucessos de Carmen Miranda gravados nos EUA, um burburinho corre entre as fileiras da plateia: Beatriz é filha de Paulinho da Viola e ele veio conferir. No início, não acreditei, mas depois percebi que aquela cabeça grisalha logo à frente poderia ser mesmo a do Paulinho.

Alô, alô, o show termina. As palmas fartas enchem o teatro do CCBB. Eu vou batendo minhas mãozinhas rumo à fileira do homem grisalho. De rabo de olho confirmo: é ele, o Paulinho da Viola! Meu coração exulta. Entretanto quem quase desmaia é o meu marido. Gente, eu nunca vi este ser racional, cartesiano e dogmático tremer nas bases por ninguém como vi neste momento. Talvez tenha escondido uma lágrima nos nascimentos dos filhos, mas se rolou, não registrei.

Onde reside o poder do ídolo? Eu tinha conhecimento de que ele adorava Paulinho da Viola, mas ao vê-lo frente a frente com ele, a expressão “emoção sem limites” ganhou um significado metafísico. Achei que o cara ia chorar. Eu juro. E meu marido ali naquele impasse: “falo com ele ou não?” Imagina se eu iria permitir que ele não extravasasse tão genuíno sentimento de fã? Dei a maior força e praticamente o empurrei na direção do Paulinho.

Seus olhos brilhavam e os dois, enfim, se saudaram em esfuziante aperto de mão. Não sei o que ele falou para o Paulinho e provavelmente nunca saberei porque Bernardo não é dado à confidências. Também não quis estragar este momento tão sensível para ele me postando ao seu lado em legítimo estilo Marisa-arroz-de-festa-do-Lula.

Fiquei de longe, testemunhando a plena realização daquele gesto. Acreditava que só a oportunidade de tocar em Einstein, Newton, Maxwell ou Faraday pudesse produzir tamanho êxtase em um cientista de carteirinha. Bernardo deixou o teatro contente da vida. Uma criança que atingiu a Lua.

Deu um vontade de ir lá e gritar para o Paulinho: “Você é o cara!" O príncipe do samba operou um pequeno milagre numa noite fria de sábado. Só um bamba deste quilate seria capaz deste mágico evento quântico, não acham?

Comentários

  1. Meu Paulinho da Viola, ou melhor, meu Deus do Samba. Opa, quer dizer...meu Deus do Céu. O cara falou com o Paulinho da Viola. Realmente uma honra sem igual! Será que devo dar parabéns pelo feito? KKKK. Lu, aguardo-te no samba hoje! Bjs.


    Ass.: Sec. sem futuro

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  2. Aproveitando a outra leva do texto (talvez a principal por vc deixar tão explicíta sua admiração por Carmem Miranda), deixo aqui alguns versos da música "disseram que voltei americanizada". Se não me engano, na verdade, se o cifraclub não se engana, o compositor é Caetano Veloso fazendo uma alusão a volta de Carmem Mirando ao Brasil:


    "Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno
    Eu posso lá ficar americanizada
    Eu que nasci com o samba e vivo no sereno
    Topando a noite inteira a velha batucada

    Nas rodas de malandro minhas preferidas
    Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you
    Enquanto houver Brasil
    Na hora da comida
    Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu"

    Bruno

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