Teresina-Brasília: a que será que se destinam?


Não sei se falo da chuva ou falo de Torquato Neto. Um com o outro pode rolar, tudo a ver. Sem Rede Globo, é claro, que Torquato jamais se vendeu. Estou reapaixonada por esse cara, apesar de pouco dele conhecer até sábado, quando Chico César cantou e contou o piauiense afiado lá no CCBB.

E o que seria de Brasília sem o CCBB? Um eterno deserto sem novidades e provocações. A aridez dos cem-dias-sem-chuva. Brasiliense é que nem sertanejo, fica de olho no céu, e sai da toca só pra mode apreciá os pingos batendo na terra ocre, acre, chofre. Eu mereço, sou filha de Deus!

Os marronzim ficando verdim... A friagem nas narinas. Crinas balançando ao vento. Paulista acha que Brasília é sertão. Muita acertada a comparação, apesar do preconceito nela embutido. O planalto central é agreste, da peste, do coro marcado de sol e carestia de nuvem preta. Preta não, corrige Tomás, cinza. Cinza-preto, que mulher vê as nuances, meu filho.

Pió é que tem boca que ainda reclama da chuvarada. "Detesto chuva, dia feio!" Heresia, sô! Tapa os ouvidos aí dos santos todos!!! Que Padim Ciço e São Pedro não ouçam blasfêmia igual. Pois eu queria que chuvesse dia sim e outro não. Os encontros marcados para antes ou depois dos respingos. Torridez só fica bonita no poema de Torquato.

Que é arretado, chuvoso de ideias que brotaram no lugar mais improvável: Teresina. Se alguém se inspira no oco da grota, tudo mais é poesia. É neto como são tantos os netos nas famílias nordestinas que vieram para o cerrado selvagem e aqui (des)construíram a utopia de galhos retorcidos, concreto aparente e mármore branco. A gente só não sai em procissão pedindo água porque Brasília é orgulhosa demais para admitir a caatinga vocação.

Torquato erosivo, abrasivo. Faz nosso cérebro entrar em combustão espontânea, instantânea de tanta lucidez. Cada frase, cada letra é faísca de evolução da espécie no meio da mesmice. A contracultura tão idealista, tão linda! Um mundo menos eu, mais nós. “Só quero saber do que pode dar certo”, diz o piauiense doido, marginal, genial. Titãs canta e todo mundo fica pensando que a obra-prima é deles. Falta é geleia geral na cultura de muita gente, coletivo no qual me incluo.

Torquato nem imagina que ainda desatina. Se vivo fosse acharia Caetano um vendido? Gil, um boçal? Torquato candango modernista, tropicaralho, vanguardista. É tão inédito que até hoje diz o que ainda não é passado. Ou é o Brasil que nunca sai do lugar?

Pra uns, Brasília é o fim do mundo. Chuva que sempre tarda, cidade que voa e não aterrissa no coração. Solitária criada à força no meio do charrascal poeirento. Torquato também era desse bando de um homem só. Seguiu viagem sem sombra, bornal de poemas, língua de trapo vistoso. Nunca pousou na calmaria, não combinaria. Queimou, queimou até morrer antes de viver só mais um pouquinho.

Eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão:
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá
aqui o terceiro mundo
pede a bênção e vai dormir
entre cascatas palmeiras
araçás e bananeiras
ao canto da juriti
aqui meu pânico e glória
aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história
começa na lua cheia
e termina antes do fim
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá
minha terra tem palmeiras
onde sopra o vento forte
da fome do medo e muito
principalmente
da morte
o-lelê, lalá
a bomba explode lá fora
e agora, o que vou temer?
yes: nós temos banana
até pra dar,
e vender
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá


(Torquato Neto)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos