Litisconsórcio de deuses

O curso de Direito Civil me deixou desidratada de ideias... Esses recursos todos, agravos, embargos, rescisórias... Ai, quem aguenta esse palavrório seco, esturricado? Estudar a tese é uma coisa, há tantas nuances filosóficas instigantes. Mas o processo em si, que provação!

Se a população brasileira tivesse um relance do imbróglio que envolve cada mísera pretensão de fazer valer o direito de, digamos, receber uma indenização por erro médico, desistiria de qualquer pretensão antes de começar. Quando penso que o meu irmão mais velho transformou um simples inventário de cartório em ação judicial só porque está aposentando e não tem mais nada para movimentar suas tardes de TV e pipoca, me pego planejando um homicídio triplamente qualificado!!!

A cabeça começa a viajar em outras paisagens mais úmidas. E eu que cheguei a caraminholar que daria uma promotora aguerrida, uma advogada de talento... Não tenho paciência para a vida com ela é e suas regras recheadas de exceções. Gosto da vida é no imaginário, nos sonhos... E neles, ao contrário da rotina de chateações com o fim da reforma que nunca chega ao fim, os acontecimentos estão, a cada madrugada, mais interessantes.

É a minha fuga, o meu Marc Chagal. Nos sonhos eu encontro os amigos que nunca vejo pessoalmente. Reencontro mamãe, dindinha e participo das festas familiares barulhentas e divertidas que se extinguiram na lide real. Sem contar que dá para tomar banho na cachoeira da infância e ainda fazer sucesso como escritora... Quase dá vontade de não acordar!

Mas eu tô no meio da explanação sobre recursos ordinários! Volta! Volta! NASA chamando Luciana!!! O recurso pra outra instância está esgotado!! Nada de sonhar enquanto eu não tiver competência para entender e barrar nada, nem pela admissibilidade e muito menos pelo mérito!

Gente, o sistema recursal do Brasil, me desculpe o preconceito arraigado, parece coisa de português!!! Mas acredito que até em Portugal, Manuel e Joaquim conseguem reivindicar seus direitos civis na mesma encarnação.

Porém, do jeito que a Justiça brasileira caminha recalcitrante e labiríntica, todo cidadão tupiniquim vai ser obrigado a assinar uma declaração de fé na reencarnação. “Quando você voltar árvore, a sua causa terá transitado em julgado, tá bom?” E se ainda não rolar, tente uma rescisória.

E eu recomeço a transcender a questão e divago para o ponto no qual a obra no meu apartamento se confunde com a hipótese contida no “Anjo Exterminador”. As arrumações, consertos e retoques parecem intermináveis. A família Zéprepré reclusa para sempre nas armadilhas da má-prestação jurisdicional do pintor, marceneiro, pedreiro, gesseiro...

- O meu quarto tinha uma porta!!!!! Cadê a porta do meu quarto?????
- Estava arranhada, Rômulo, o moço levou para consertar.
- Mas levou quando eu estava dormindo?????

Peticiono que apliquem a celeridade processual no meu litígio reformístico. Data Vênia, creio, o meu recurso não será conhecido. Porque Justiça e reforma de casa tem algo perversamente em comum: pague para entrar e reze para sair.

O curso segue nos seus inúmeros prazos e espécies. Prazos? Alguém falou em prazos aí? Fazer o quê se o meu pedido caiu na vala dos repetitivos? Quem é que não tem uma Reclamação contra a construção civil? É duro ser representativa da controvérsia. Logo eu, uma menina tão propensa à "transcendência dos motivos determinantes"...

Caberia uma ação de inconstitucionalidade no Supremo? Ó Pai, livrai-me de recorrer à Justiça e à mão de obra da peãozada, amém & namastê! (Só mesmo um litisconsórcio de deuses para dar cabo de tamanha causa perdida).

Comentários

  1. Muito bom!Que pena que vc não levou adiante a possibilidade de ser uma advogada ou promotora, talento para convencer com as palavras vc tem de sobra.

    Bjs. ..., e até segunda.

    Tive informação de que semana que vem poderemos ter novidade.

    Alexandre.

    ResponderExcluir
  2. Lu,adorei o texto! Desistiu do Direito??? Sei que é barra e esses benditos prazos matam qualquer um, mas você tem um talento danado... Não faça como eu, engavetando o diploma. É uma carreira linda e você sabe muito bem lidar com o jogo das palavras.

    Bjs,

    Renata.

    ResponderExcluir
  3. Adorei, Loo!
    E eu, que nem sonhar sonho? aliás, nem dormir durmo, ou porque estou pilhada ou porque estou com uma tosse eterna (alérgica?), não, eterna não, há de passar.
    Beijo.

    ResponderExcluir
  4. Essa é a Lulua que eu conheço: caneta afiada e de humor refinado. Agridoce. Linda.

    Bom findi,

    Walton

    ResponderExcluir
  5. Credo! Por isso prefiro tentar mil acordos antes de ter que entrar na justiça... fiquei com muito medo dessas palavras sinistras aí... rs!

    Bjs
    Patty

    ResponderExcluir
  6. Desisto de postar... Snif snif... já é a terceira vez que a rede engole ou pesca meu post. Mas vamos lá.
    Sobre as questões reformísticas não é a toa que a Lei da Besta permite aditivo de 50% nos casos de reforma.
    E o Romulito continuando dando um show em meio aos aditivos.
    Platz

    ResponderExcluir
  7. Parabéns, Lu, conseguiu (como sempre né?) resumir pelo menos o que eu vivo, em um texto... PURA VERDADE!!!

    O problema é que alguém, na minha profissão, deveria ter mais fé nesse tal Direito... Mas o que acontece é o contrário, ainda mais quando a juíza é, algumas vezes, parte em processos, e sofre com a tal ritualística no meio da qual se perdem as verdadeiras pretensões...

    Verdade vira mentira, honesto vira mau-caráter, e por aí vai, somos todos colocados no mesmo pote... Hoje mesmo estou só azedume com este nosso PJ. Talvez passe, talvez não...

    Bjs, Ana

    ResponderExcluir
  8. Agradecida, caríssima dear Ana! E todos os que postaram comentários, vencendo os obstáculos todos!!! O que acontece nesse blogspot, hein!!!!

    Imagino o quanto deve ser desapontante o Direito "real" das audiências e das "interpretações" que sempre beneficiam - ao que parece - os que menos merecem ser beneficiados.

    Eu ando no automático há tempos aqui no STJ. Nada mais me comove por aqui. É muito triste isso. Mas o serviço público é mesmo uma fábrica de desmotivados.

    Que dia vamos sair novamente (essa pergunta vale para todos os friends que não vejo ao vivo)?

    Um beijo e boa semana,

    Lulupisces.

    ResponderExcluir
  9. Lu. Amei. Você arrasou. Muito bom, mesmo. Você tem o dom da escrita como poucos tem.Pelo amor de Deus, não pare. Continue a nos encher de felicidade.É prazeroso ler um texto assim.

    Bjim, Hélio.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos