Baú do atentado

Subject: dia fake, dia tudo!
PostedDate: 09/13/2001 08:12:PM

Oi ansiosos amigos!

Podem confessar que vocês já estavam agoniados para receber mais um dos meus relatórios... Bem mais calientes e interessantes que qualquer notícia de jornal. Confessem!!! Pois é, o problema é que foi difícil sentar aqui na frente do computer today. Eu praticamente dormi o dia inteiro.

Já explico: antes de toda a nuvem negra se abater sobre Manhattan, eu vinha dormindo mal. Isto é recorrente na minha vida. Há fases em que acordo lá pelas quatro e meia da manhã, horário em que meu cérebro tem as melhores ideias. Se eu fosse para o computador nesse momento, só escreveria bestsellers.

Comprei um calmante natural para ver se o meu sono melhorava e o comprimido foi uma porrada! Fiquei sonada ontem, anteontem, hoje... Demência, preguiça... Por isso, não pensem que eu me dopei por causa dos atentados, que não precisa chegar a tanto, tá?

Se bem que a coisa está realmente feia. Obrigada, Má, por enviar as análises brasileiras. Obrigada, Larinha e seu Carioquinha, Leila, mamãe, Dedéia, pelo carinho, pelo contato. Valeu, Marcinha, minha amiga astróloga, pela meiguice da mensagem. Você demora a aparece, mas quando aparece é sempre marcante!

As tevês aqui não param com a cobertura da tragédia. Os jornais estampam as fotos horrizantes e horrizadas, além dos sentimentos de vingança, revanche que tanto me assustam. Os americanos caíram do cavalo e não vão deixar o tombo barato, é lógico. Esta sempre foi a minha preocupação, desde o princípio dessa ficção científica sem hora para acabar...

Também concordo que a xenofobia vai aumentar bastante, principalmente em relação aos habitantes do Oriente Médio. Os ianques sempre foram amantes da guerra e vão adorar ter uma desculpa para destroçar algum lugar por ali... Já tem gente dando depoimento do tipo: "Eu fui ao Vietnã, mas o que vi hoje, nos destroços do World Trade Center, é muito pior!"

Portanto as comparações com a guerra estão presentes. O presidente Bush - demente por excelência - já disse, de forma clara, que o atentado foi o primeiro sinal de guerra do século XXI. Os desdobramentos vão ser intermináveis, é o que está me parecendo.

Mas ontem eu estava lá. Ontem eu fui ao cenário do caos. Ontem foi o dia mais surreal de toda a minha vida. O dia mais fake de todos. Fake em todos os sentidos. Aquilo tudo parecia miragem, montagem. Eu era a própria mentirosa em pessoa, fingindo ser uma repórter cobrindo a tragédia. A única coisa que não parecia mentira naquilo tudo eram as palmas de solidariedade que povo ofertava aos herois anônimos. Também acho que os bombeiros são verdadeiros herois, Lumi. Eles estão sendo fantásticos e mais de 300 desapareceram sob os escombros...

Peguei o trem para Manhattan às oito e meia da manhã. Tudo já parecia estranho desde a estação. Manchetes surrealistas nos jornais faziam lembrar paródias do Planeta Diário, Mad... Era tão inacreditável olhar para aquelas fotos das torres queimando, desabando... Pessoas de cabeça para baixo fazendo seus voos-solo rumo à morte...

Dentro do trem, que estava bizarramente vazio para a hora do rush, passageiros cabisbaixos, olhares perdidos nas janelas. Eu também estava assim... Mas dentro de mim uma excitação crescia. Eu estava para me deparar com um marco histórico!!! Algo que meu filho vai ler no livro de História: "No dia 11 de setembro de 2001, o mundo viu sistema de dominação cultural e econômica ruir em poucos segundos. As consequências do atentado terrorista ao WTC foram..."

Cheguei a Manhattan e a Grand Central Station estava sinistramente abandonada. O costumeiro formigueiro de passantes cruzando em X para diversos destinos: trens, metrôs, cabs, ruas, havia desaparecido. Uns gatos pingados chegavam e saiam.

Peguei a linha 6 do metrô para o Hunter College, que tinha colado em suas várias entradas um cartaz: AS AULAS ESTÃO CANCELADAS HOJE 09/12/2001. A Lexington Avenue era um deserto. Na esquina, soldados, tanques, bombeiros... Me aproximei e perguntei o que eles estavam fazendo ali. Disseram que esperavam ordens para ir para a área do atentado. Fiquei um pouco ali, parada, sem saber para onde ir. Foi então que me lembrei que o Vicente, enrolado como ele só, ainda não deveria ter saído de casa.

Eram quase dez horas da manhã, mas sabia que o "banho rápido" do Vicente durava meia hora. Saí correndo para o apartamento dele, que fica perto do Hunter. Dito e feito: lá estava ele acabando de tomar café da manhã. Manhattan se dissolvendo lá fora e o Vicente ainda foi tomar o tal banho rápido. Acreditem!!!

- Eu vou acompanhar você na cobertura, falou?
- No problem, beibe!

E fomos para a rua lá pelo meio-dia. Primeira parada: ameaça de bomba dentro da sinagoga da 80 e poucos. Era, graças a Deus, alarme falso. Alguém esqueceu uma bolsa e todo mundo já se cobriu de hipóteses. Este é o resultado imediato de um atentado terrorista como do WTC: o pânico se instala nas pessoas, bastando uma faísca para que ele cresça, cresça, cresça... Bolsa, mochila, alguém de turbante, um sotaque diferente, passam a ser ameaças.

Da sinagoga, seguimos para o consulado brasileiro em NY. Vicente queria saber de possíveis brasileiros mortos ou desaparecidos. O consulado fica na Sexta Avenida. Passamos pela Quinta Avenida, a mais turística, a mais lotada, a mais chatinha, e ela também estava um deserto. Parecia o Setor Gráfico de Brasília em dia de domingo. Era quarta-feira e tudo dormia o sono da bela adormecida.

Minha máquina fotográfica, que é uma droguinha, começou a registrar tudo. Principalmente aquele sinal de fumaça pregado no céu de Manhattan. Sempre ali, no mesmo lugar. A impressão é que o céu ficou para sempre manchado ali onde as duas torres moravam.

No consulado, esperamos pra caramba pelo cônsul, que se tratava de um inexpressivo de primeira ordem. Ele deu um monte de evasivas na coletiva para lá de xoxa. Eu lá no meio, crente do meu papel de repórter fazendo algum trabalho sério. Até fiz uma pergunta, pode? No final, o cônsul perguntou de que jornal eu era e eu tive que pagar o mico de dizer que estava auxiliando na cobertura. Ridículo, mas eu não estava nem aí.

Dali, seguimos para o metrô para descer até o mais próximo da tragédia. Passamos pela Times Square, que também repetia o cenário de cidade-fantasma. Estranho e desolador. O sinal de fumaça era o marco de NY. Estávamos hipnotizados por ele.

A excitação crescia à medida em que nos aproximávamos da cena do crime. Eu, que sempre gostei de hostórias policiais, sentia uma espécie de horror encantado por tudo aquilo. Não perdia um lance com a minha máquina. De repente, pá mecânicas gigantescas invandiram as ruas. Elas vinham às dezenas, em seu lento trafegar. Depois das pás, foi a vez dos caminhões enormes, inacreditáveis, próprios para o transporte dos destroços mais pesados.

Pessoas mascaradas, trajando uniformes de proteção contra guerra química, surgiam das brumas. O cheiro de queimado ardia nas narinas. A fita da polícia "don't cross" estava por todos os lados, proibindo o acesso ao ground zero. Mas a imprensa podia entrar. Entretanto era preciso pegar um passe lá na puta que o pariu. E lá fomos nós, Vicente e eu, atrás dele.

As pernas estavam cansadas de tanto andar, mas a adrenalina era maior. Do nada, surge o Bloomberg no meio da confusão. O candidato a prefeito de NY entra em cena para fazer o seu comercial. Vicente pôs o gravador na cara dele e eu tirei uma foto do Vicente em ação.

Seguimos. A cada momento um policial dizia uma coisa diferente. "Não pode entrar, não têm mais passes. Os passes são ali, naquela esquina". Alcançamos a tal esquina, numa avenida larga perto do rio Hudson. A rua havia se transformado no corredor de escoamento do atentado. Tomada por caminhões, bombeiros, guarda nacional, médicos, voluntários, populares, imprensa... Bastava olhar para a esquerda para enxergar o vazio deixado pelas duas torres. Havia um buraco negro enorrrrrrrrrrrrrrme na paisagem. Um buraco do tamanho do horror daquilo tudo. O sinal de fumaça mais forte, imenso, um cogumelo de proporções atômicas.

Fomos entrando, nós dois, meio na cara de pau e um policial acabou nos barrando. Expliquei: I am a journalist. Ele respondeu: I am a cop! Bem, depois dessa, eu me resignei. Entretanto o Vicente aproveitou a nossa conversa para fugir entre os caminhões. Foi-se embora com a minha mochila nas costas!!! Sorte que eu havia tirado minha carteira internacional de jornalista lá de dentro.

Quando me sentia totalmente desolada, sem um puto no bolso para voltar para casa, o policial me disse para atravessar a rua e fica esperando do outro lado junto com outras equipes de imprensa. Eles estavam permitindo a entrada de grupos de repórteres guiados por policiais.

Fui para lá e me juntei aos bam-bam-bans da imprensa mundial. Dúzias de cinegrafistas, repórteres, fotógrafos já esperavam para entrar. Todos eles devidamente identificados com suas credenciais poderosas: CNN, CBS... E eu apenas com aquela carteirinha vagabunda pela qual paguei 60 dólares... Bem que a Federação Internacional dos Jornalistas poderia ter feito um documento mais bonitinho, né?

Pois é, estava ali tensa, findindo ser alguém a serviço de algo, morrendo de vergonha de ser barrada no baile, quando surge um fotógrafo com a mesma bat carteirinha que eu. O cara grudou em mim e sugeriu que nós dois formássemos uma dupla. OK, vamos lá...

A espera estava me consumindo. Caminhões passavam, voluntários passavam, palmas dos observadores. Momentos emocionantes e inesquecíveis. Um voluntário trouxe garrafas de água para o pessoal da imprensa. A fumaça chegava até onde nós estávamos e foi um alívio beber aquela aguinha fresca.

Os policiais, enfim, fazem uma barreira para inspecionar os documentos. Entrava um a um. Passei na frente do fotógrafo cearense. Os policiais olhavam a carteira vermelha escrita em inglês, mas tão mixa... Mas quando viram o cartão americano de autorização para trabalhar, me liberaram imediatamente.

O cearense vinha logo atrás mostrando a sua bat carteira, anunciando aos quatro cantos e apontando para mim: "he is my boss". Pronto, estava no sal. Saí de zé ninguém para boss de alguém!! Foi divertido!!! Só eu para me meter nessas roubadas...

E chegávamos cada vez mais perto. A fumaça ficava cada vez mais densa. O cheiro de queimado cada vez mais ardido... A 800 metros do ground zero, fomos obrigados a parar. Ali era o último ponto de aproximação possível. Era perto, lógico, mas foi frustrante não chegar mais perto ainda. A minha máquina disparava para todos os lados. Freneticamente, alucinadamente. Era tudo muito surreal. Tudo muito além do que eu podia imaginar estar vivendo em qualquer dia da minha vida.

Reencontrei Vicente, o que foi uma bênção. Enquanto ele entrevistava um voluntário que acabava de sair dos escombros, eu entrevistava outro, para ajudar. Um deles trouxe uma labrador linda e exausta. Ele se sentou esgotado e imundo e a cadela deitou a cabeça em suas pernas. Uma das cenas mais tocantes que eu já presenciei até hoje. Então começamos a conversar e ele disse que a cachorra havia encontrado um corpo.

Contou também que tudo estava muito instável lá dentro. Que havia um buraco de 150 pés!!! (esse sistema de medidas maluco americano!!!) Eu sei lá o que são 150 pés!!!! O voluntário ainda tinha esperança de encontrar alguém vivo... A labrador arfava de olhos fechados no colo do dono. O cara também estava ofegante, exaurido, comovido e comovedor!!! Tive vontade de dar um abraço naquele cara que estava ali porque queria estar. Porque queria ajudar. Era um equatoriano que cresceu nos EUA. Falou em espanhol e em inglês.

Ficamos mais um tempo por lá e voltamos para a casa do Vicente, onde degravei as fitas das entrevistas, enquanto ele sentava no computador e escrevia a matéria para o Correio Braziliense. Já era tarde e o tempo estava se esgotando para mandar o texto para o Brasil. Vicente ficou meio histérico. Além disso, o telefone não parava de tocar. Coisa de louco total!!!

Saí morta de cansada da casa do Vicente e peguei o metrô de volta para a Grand Central Station. Para o meu desespero, o subway parou no meio do caminho, entre uma estação e outra. Ficamos presos no buraco por meia hora,ouvindo uma gravação: "Emergency situation, emergency situation!!!" O desconforto e o medo tomou conta vagão. O que estava acontecendo? Angustiante!!! Depois de 30 minutos, o trem voltou a rodar e só pus o pé em casa lá pelas dez p.m.

Bernardo foi me buscar na estação de Larchmont. Que reconfortante ver a carinha descansada dele. Para mim, o dia havia sido de cão. Pavoroso, marcante, emocionante... Um dia tudo! Depois descobri que o metrô havia parada por causa de uma ameaça de bomba no edifício Empire State.

Pois é, galera, estas foram as 24 horas mais fakes da minha vida. Sabe que agora estou achando bom morar aqui no subúrbio tranquilo e tedioso? Por aqui, parece que nada aconteceu ali do lado. Tudo transcorre como sempre transcorreu e você pode ficar um pouco mais livre da paranoia e da devastação. É só desligar a TV que nada lhe estressa.

Agora chega, né? Por hoje é só, pessoal!

Beijão para todos,

Lu.

Comentários

  1. É, minha amiga,

    eu dei uma lida no seu texto "Baú do atentado". Muito legal!

    Me lembro que você nos enviava vários relatos sobre os eventos por NY-City na ocasião.
    Loucura total!!

    Nesta semana, certamente, muito será dito sobre o atentado!

    Abraço,

    Paulo

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