O vão do coração





“O verdadeiro amor é vão", alerta Gilberto Gil em sua antológica Drão. Talvez hoje já esteja pronta para compreender essa constatação. Os filhos são o amor vão. Porque o amor carnal, o amor entre casais (sejam eles formados por quem quer se seja) pressupõe uma troca. Uma contrapartida, um toma lá dá cá. Você não se entrega se outro não se entregar. De papel passado ou não, é contrato. E se houver o desequilíbrio, desanda. É desamor. 

O amor pelos filhos, por mais que queiramos, pode ser totalmente desequilibrado. Não aceita papéis nem receitas, nem alianças no dedo. Eles nos amam, obviamente, mas são tão livres. Não se sentem obrigados a nos amar. Para eles é natural que estejamos ali por eles. Eles não sabem que existem tantas crianças sem pai e mãe por aí. Acham que assim que nasce um bebê nasce também uma mãe. Ah, se a bela campanha da Johnson & Johnson traduzisse fielmente a realidade... 

O amor vão pelos filhos é soltá-los pela mão... Deixá-los subir na árvore quando pretendemos trancafiá-los longe dos perigos do mundo. É nos despedir deles pela manhã sem saber se o veremos à tarde... No filme Gravidade, desculpe-me se entrego parte importante da trama, a cientista está amarga e distante. Perdeu a filha por causa de um tombo besta na escola. Quantos amores vãos se vão assim? 

O vão, o oco de amar os filhos é não ter a mínima ideia do que eles serão quando crescer. Se eles vão se lembrar de você apenas como uma megera ou se guardarão momentos doces para recontar aos filhos deles. Dizem que filhos são ingratos. É exatamente por isso: a gente chama de ingratidão essa liberdade colocada aos pés deles pela vida. OK, vocês me pariram, mas e daí? Jamais essa escolha poderá (e deverá) ser paga na mesma medida. 

De fato, é muito injusto que joguemos esse fardo nas costas de nossos rebentos. As lendas populares dizem que as mães judias são assim: chantagistas emocionais clássicas. Mas que peso para um filho cobrar uma igualdade de sentimentos nessa relação que já brotou lacunar. 

Os pais depositam todo o vão de seu coração no filho. Ao passo que o filho deposita todo desvão de sua afetividade no dia seguinte: brincadeiras, brinquedos, amigos. Mais! Mais! Mais! Eles são ávidos pelo futuro, enquanto queremos apenas reter o presente e viver de passado. 

Os filhos nunca serão adultos como somos hoje. E quando forem maduros, seremos velhos, ou seja, crianças com rugas. Por isso, o verdadeiro amor é vão... Haverá sempre esse vácuo, esse descompasso. A afirmação de Gilberto Gil em sua literalidade. Todavia, como sói ser nas complexidades humanas, também em sua amplidão metafórica: utopia. O amor maternal e paternal é irreal de tão profundo. Impossível ser alcançado - em sua raiz intricada - pelo leviano amor filial. 

Amo em vão os meus filhos. Sei que poderão estar aqui hoje, não amanhã. E que no futuro podem mesmo sumir no mundo, o medo maior de todos os pais. Porém, nenhum temor me faz amá-los menos ou eles me amarem mais. 


Comentários

  1. Filhos são espíritos reencarnando, assim como nós.
    A intensidade dos sentimentos só pode ser explicada pelas experiências vividas ao longo das encaranações passadas.

    Nem todos os pais têm este amor vão pelos filhos.
    Nem todos os filhos deixam de ter este amor vão pelos pais.

    Muitos pais e filhos reencarnam nesta condição exatamente para ver se conseguem desenvolver alguma afeição... Para amenizar o ódio que sentem uns pelos outros há tantos séculos.

    No meu caso eu acredito que minha mãe e eu não conseguimos chegar ao ponto de nos amarmos nesta vida. Mas já fizemos grande progresso, pois deixamos de nos odiar. E pelo menos da minha parte, foi uma luta conseguir isso.

    No caso do meu pai, tenho absoluta certeza de que já o amava e muito antes dessa vida. Talvez até um amor não correspondido por ele. E creio que vim como sua filha nesta vida, para aprender a amá-lo de outra forma. E para aprender a vê-lo com outros olhos, enxergando inclusive os seus defeitos. E creio que também passei neste teste.

    No teste do desapego eu já tenho a certeza de que vou falhar. Paciência... Fica para próxima vida.

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  2. Texto belo e muito verdadeiro pra mim que já estou numa fase posterior à sua.Lembro-me com muita saudade em meu coraçäo,a saída de cada um dos meus filhos,e até hoje,bate aquela lembrança de todos reunidos no aconchego e proteção da mãe leoa...
    bj.
    Namastê!

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  3. EU TAMBÉM CHOREI!!! ADOREI ESSE TEXTO, PRIMA!

    Dja Castro.

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  4. Muito lindo e profundo esse texto, Luciana ! 🌷

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  5. Gratidão infinita Lu 💕por me fazer despertar, com esse belíssimo texto, bem no dia em que o meu primogênito faz 46 anos….um presentão 🙏💐😍

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  6. Maravilhoso, Lu! Desse jeito. Muito "bem dito".
    E a foto do texto está belíssima tbm!

    Rosângela Maria

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  7. Que texto lindo, Luciana! Posta no Facebook, Muitas mães vão se ver neste texto.

    Leila Brandão

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  8. Texto que dói fundo...

    Lucilene

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  9. Verdadeiro, com aguda compreensão da realidade.

    Paulo Cabral

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  10. É bom confirmar verdades que não sejam ditas só por nós. Adorei!

    Lenilde Ramos

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  11. Absolutely beautiful! Que texto profundo, sábio, e universal! Fiquei tocada! Que fotografia linda sua com seus filhotinhos!!

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  12. Maravilhoso texto,Lu! Vc consegue colocar os sentimentos em palavras de uma forma... Não tenho palavras!! Lindo

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  13. Seus textos são poéticos. Assim como as cores na tela os seus escritos são um fascínio para os bons leitores. Realidade e fantasia num passe de mágica.
    Lembra o Dalton Trevisan e o cotidiano fantástico.
    Bjs,

    Jandira Costa

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  14. Texto antigo, novinho pra mim.
    Incrível como tudo que escreve me emocionou…e acredito que é bem assim. Profundo para minha noite de sábado.

    Patrícia Dellany

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  15. Sei lá que amor é esse, desmedido e unilateral na sua forma visceral de ser...Amor maternal, amor incondicional uma vez que não nos cabe pedir ou querer mão dupla na fluidez dos sentimentos...Que não nos cave qqr cobrança de troca...Se eles existem porque os concebemos e os permitimos nascer, tbm eles não nos pediram para ser filhos...Não há dívidas, de parte a parte, apenas a saga de conviver da melhor forma possível, de se permitir todas as trocas humanas possíveis e aguentar/preencher o ninho vazio mais tarde, quando eles se vão... porque é "ânsia da vida por si mesma...", como bem disse kalil Gibhram...

    Marilena Holanda

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  16. Que textaço! Lindo. Valeu, Dona Lu. Boa semana. Abraço,

    Paulo Bigonha

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  17. Texto verdadeiro e profundo.
    Mãe e filhos belíssimos!

    Jandira Costa

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  18. Nossa! Que texto mais lindo e verdadeiro! Adorei!

    Karoline Simões

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