Natureza morta?




Ela flagrou a morte da flor. No momento em que abriu a porta do apartamento, lá fora chovia, era noite. A flor morreu na frente de seus olhos cansados. A espádice amarela saltou da proteção do manto branco para o vazio, como se pulasse de uma ponte. Um leve barulho oco sobre o centro da mesa e o lírio do Nilo tombou, sem vida. O copo de leite derramado... 

A moça correu a acariciar a elegante calla branca recém-falecida. Era a primeira vez que aquela casa recebia uma flor daquele porte: alva, misteriosa, empertigada. A sala ganhara uma suavidade nunca imaginada. Teria sido seu olhar cansado pousado sobre a flor a causa de sua morte súbita? Mau olhado pode acontecer sem querer... 

A empregada levantou outra hipótese metafísica e já foi se desculpando: será que coloquei energia negativa quando troquei a água do jarro, mas eu não tenho dessas coisas?! Todavia, o fato jazia: a Zantedeschia sucumbira. Permanecia branca, embora sem leveza. Estranhamente era como se a alma respirasse, porém o corpo tivesse partido. A cabeça majestosa pendia do caule ainda muito verde vivo nas mãos da moça. 

A patroa roubara as flores de um arranjo de festa. Vão por tudo no lixo mesmo, levo para minha casa! Ressabiada, colhera apenas quatro copinhos, envergonhada de furtivo ato. Mas, ao aconchegá-los sobre a mesa da sala de estar, sentira um arrependimento atroz: por que não trouxera uma dúzia, são tão lindas! 

A presença daquelas flores calmas, símbolos da prosperidade e iluminação espiritual, enchera a casa, de luz; a rotina, de graça. Apesar da clara indiferença dentro do vaso, o arranjo roubado trazia ao lar acolhimento e harmonia. 

Mas, repentinamente, aquele encanto se rompera com decisão da calla lilly pela morte. A flor, enfim, ratificava a finitude comum às belezas naturais. De forma teatral e fora de seu berço, a mãe de todas as naturezas África, escolhera morrer na frente dela! Audaciosa, impetuosa, dramática! O grand finale, a apoteose: morte e vida, Zantedeschia! 

A flor austera, sofisticada e tóxica, sim, tóxica - ai de quem lhe beijasse os lábios lívidos, veneno que corta a respiração – era a prova cabal da fragilidade do ser. Não suportara a restrição de uma existência em jarro. 

Aliás, quem suporta?


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Comentários

  1. Interessante...

    Lendo sobre a flor me veio em mente que nossa existência é igualzinha.
    Somos espíritos livres aprisionados num corpo de carne.
    Numa versão piorada, porque nem tem temos a beleza da flor.
    "Túmulos caiados de branco por fora e cheios de podridão por dentro".

    Talvez seja por isso que muitas vezes a gente se sente sufocado, com uma ânsia de fazer alguma coisa que nem a gente conscientemente sabe o que é.

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  2. Uau, esse ficou enigmático. Só com uma pesquisa básica na internet para acompanhar a erudição botânica.

    Bernardo.

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    1. Esses nomes "difíceis" são todos apenas sinônimos para a flor copo de leite. Cê sabe que eu tenho arrepios em repetir palavras num mesmo texto. Chega a ser uma neurose que eu nutro, mas é por uma boa causa. Me faz pesquisar sobre temas que nunca pensei antes.

      Beijim,

      Lulupisces.

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  3. Lu, você está superando minhas expectativas.
    Um livro, um livro, um livro!

    Davide.

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  4. Faço coro daqui louvando esse belo texto, um livro,um livro, um livro please!!!
    Namastê!
    Cynthia

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  5. Yess! Um livro baby! As ruas pedem em clamor: LIVROLU JÁ! ! Bjitos

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  6. Belo texto, Luciana! Tocante. Eu me identifiquei com essa parte: "arrependimento atroz: por que não trouxera uma dúzia, são tão lindas!" hehehe. Realmente um belíssimo texto, texto com alma!

    Rogelma.

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