Trilha de cinema


Ninguém parava quieto na fazenda. A gente inventava moda o tempo todo, criando novas aventuras. Tanto que andamos no mato! Tanto tombo de cavalo! Tanto banho de rio! Tantos carrapatos grudados no sovaco, barriga, atrás da orelha... 

– Vamos fazer uma excursão pelo córrego até chegar na cachoeira?, propus.

A Salta Pau era joia! As terras ofertavam vários riachinhos, o rio Corumbá, diversas quedas d’água. Uma terra molhada, cheia de natureza bonita para aproveitar. O córrego que eu queria explorar ficava numa das divisas da gleba que terminava em uma cachoeira escondida, onde o sol nunca batia. Fria!!! Ui!!! 

– Mas não é a mesma cachoeira que a gente vai sempre não, expliquei para minha velha turma de amigos do Notre Dame.

– E existe outra por aqui?

– Tem sim, Cacau. Uma bem mais longe, lá perto da fazenda do Davi (Davi era o fazendeiro vizinho).

– Ah, mas a gente vai ter que andar muito..., resmungou, com preguiça, Lígia.

– Que nada! Vai ser o maior barato! Eu topo!, animou-se Bila.

Então comecei a explicar o plano da excursão para a galera. A gente ia a pé até o riacho, entrava dentro dele e ia desbravando o caminho até dar na cachoeira. Tudo por dentro da água, como bandeirantes.

– Sei não, parece um tanto perigoso. E se tiver cobra?, observou Larinha.

– Aposto que não. Nunca vi uma cobra ao vivo e em cores na minha frente, respondi decidida.

Depois de discutir prós e contras, resolvemos ir.

Meia hora de caminhada animada e estávamos na beira do córrego.

– Vai ser moleza! Olha só como é rasinho!, vibrou Marco Antônio.

– Putz, mas a água tá superfria!

– Você é suspeita, Andréa. Não gosta de tomar banho nem de chuveiro!, implicou Kédyma. As duas viviam criando caso uma com a outra. Às vezes a briga ficava feia.

– Ih, já vão começar?, eu me intrometi logo para evitar a discussão.

E lá fomos nós. Em fila indiana que nem a do colégio para cantar o Hino Nacional. No Notre Dame todo mundo tinha que cantar “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...” antes de entrar na sala de aula. Era um programa legal. As filas certinhas, por ordem de tamanho. Meninas de um lado, meninos do outro. Quem sempre ficava chateada era a Patty, alta desde menina e, por isso, sempre nos últimos lugares da fila.

Marco Antônio ia à frente, testando o leito do riacho, sentindo onde era melhor de pisar. Eu ia logo atrás, apaixonada por ele. Ele era alto, magro, desengonçado... Quem ligava? Para mim, ele era lindo! Marco Antônio foi meu primeiro amor. No começo ninguém sabia de nada. Eu conseguia disfarçar bem. Mas logo eu não resisti e contei para as meninas.

Todas torciam pelo namoro da gente. Só que ele nem aconteceu direito. A gente não se entendia de jeito nenhum. Mas foi dele que ganhei o primeiro beijo. Sensação estranha e maravilhosa de pavor e bombom.

Lembro que voltei para casa caminhando em flocos de algodão. Mamãe olhou para mim e disse:

– O que é que deu em você, menina? Some a tarde inteira e chega aqui assim, com essa cara de Laika! (Laika era a cachorrinha da minha irmã Vanja, safada que só vendo).

Tempo bom esse de final de infância e começo de adolescência. Tudo para se provar, descobrir, amar...

Voltando ao córrego, atrás de mim estava o Cacau e depois Dedéia, Bila, Lara, Lígia, Kédyma, Patty e Dri. Em poucos minutos estávamos molhados dos pés à cabeça porque, ao contrário do que parecia, o riacho não era tão rasinho assim. Havia lugares que de repente ficavam fundos, buracos que nos cobriam inteiros. A gente caía e ploft! Ensopávamos o resto da roupa.

– Ai que droga! Tô toda suja de lama!

– Deixa de ser fresca, Kédyma! Você queria entrar no rio e ficar seca?

Mal a Bila fechou a boca, ouvimos um som oco, uma pancada seguida de gritos.

– Socorro! Socorro! Eu vou morrer! Eu vou morrer!!

Marco, Cacau e eu, que já estávamos bem adiantados, voltamos correndo. Era Lara, que tinha escorregado na pedra lisa, cheia de lodo do riacho, e caído dentro da água, ficando apenas com a cabeça do lado de fora.

Começamos a rir.

– Você é dramática mesmo, Lara!, brinquei.

– É, devia ser atriz da Globo..., completou Dri.

– Tá bom, não foram vocês que bateram a bunda nessa pedra dura. Pensei que a água fosse me puxar para baixo, choramingou Lara, fazendo bico.

– Sim, o fundo é de areia movediça. Esquecemos de lhe avisar, troçou Cacau com a voz calma de sempre.

Marco Antônio ajudou a gorducha a sair do buraco e seguimos explorando nossa trilha aquática.

Os tombos, lama, gritos e arranhões foram recompensados. O presente veio na forma de uma bela cachoeira quase selvagem. Pular lá de cima no poço azul, no meio da mata, foi coisa de cinema. Inesquecível cena de Indiana Jones e Jacques Cousteau no planalto central.




Comentários

  1. Adoreiiiii...foi uma das melhores excursões que já fiz na vida!
    Eita saudade!
    Bjs, Dri

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  2. O texto estava indo bem, eu estava aqui recordando a irresponsabilidade dos tempos de infância.. Mas...
    Enfim...
    Como vocês puderam perceber o bulling não é novidade dos tempos moderno. Sempre existiu e mesmo depois que as pessoas crescem (ou pensam que crescem) ele não acaba.

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    Respostas
    1. Larinha,

      que besteira! Achei que você já estivesse nem aí para o fato de ser gorducha. Você mesmo gosta de dizer isso, mas percebo que é só da boca para fora, não?

      Eu tentei manter o texto o mais fiel possível ao pensamento da época, só isso! Marco Antônio poderia ficar puto por ser chamado de magro e desengonçado, por exemplo. E a Dedéia poderia se irritar pelo fato de ser chamada de "porquinha", ou eu de mandona, autoritária... E a Patty de "voz sumida, muda".

      São características da infância, fatos que nos formaram para o bem e para o mal. Não houve aqui nenhuma intenção de lhe ferir ou ferir qualquer amigo de infância, pelo contrário.

      Estes textos são uma homenagem a nossa infância, a tudo que vivemos juntos. Parece todos perceberam o objetivo dessas recordações, menos você.

      Se você ler os comentários dos últimos textos que envolvem a galera Notre Dame, verá que estou com a razão.

      Beijos,

      Lulupisces.

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  3. Amei, mais uma vez, esse texto também. Lembro da nossa travessia no rio, o frio na barriga... e nos ossos! rsrsrs

    Em algumas séries no ND consegui alguém que ainda era mais alta que eu, e que ficava atrás de mim na fila! Era uma glória deixar de ser a última! Se não me engano, seu nome era Vanessa...

    Bjs
    Patty

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    Respostas

    1. Era a Vanessa Demenjour Santos, uma negra alta e magra bonitona!! Sabia que ela virou modelo por alguns anos? Ela mora na 715 sul até hoje... Era minha amiga de quadra também. O irmão dela, Gustavo, continua super amigo do meu irmão Eduardo e vive lá fazenda, Patty!

      Beijão,

      Luzinha-Lulupisces.

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    2. Uaau! Isso mesmo! Engraçado como os nomes vem vindo a mente após as recordações dos episódios... muito legal isso!

      Mil bjs
      Patty

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  4. Pattygirl,

    O nome também veio a sua mente porque eu o escrevi no texto Prelúdio, recorda? Falei de vários nomes que povoaram minha mente com suas combinações interessantes. O da Vanessa era um deles.

    Beijão,

    Luzinha-Lulupisces.

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  5. Fez muito jus ao nome do blog.

    Achei tão bacana a confissão dessa sublime lulupice.

    Ótima quarta para você!

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  6. Luciana,

    Essa aventura até a cachoeira foi, para mim, a mais marcante! Uma mistura de aventura, raiva, paciência e muita diversão! Sua descrição ficou maravilhosa, pena que não dá para mostrar todos os detalhes daquela aventura! Mas o legal é que lendo seus textos pude reviver aqueles momentos mágicos na época do Notre Dame! A nossa turma era muito legal, pessoas tão diferentes mas que conseguiam viver em harmonia(claro que nem sempre a harmonia se mantinha por muito tempo).

    Beijos para todas e um forte abraço no Cacau(seria bom se todos pudessem ler seus textos, que me arrisco a dizer são pequenas partes das memórias de cada um)!

    Marco Antônio

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