Luz acesa, janela fechada


Imagina o que é dormir tantos meninos diferentes num mesmo quarto... Pois era assim que meus amigos e eu costumávamos fazer. Todos queriam ficar num quarto só.

Não porque a casa da fazenda fosse muito pequena. São quatro quartos, uma sala espaçosa na parte de cima. Descendo as escadas de madeira, estão a cozinha e o banheiro. Mas a gente quando é criança não quer saber dessas coisas não. Que graça tem ficar cada um num canto? E o caos?

Geralmente a gente ficava no quarto do meio. Era uma cama de casal e um beliche, mais um armário e uma arca. Tudo bem antigo, com cara de casa de vó. Caber todos no mesmo cômodo era um desafio. O quebra-cabeça começava:

– Bila, eu e Dedéia vamos dormir na cama de casal. Márcia e Kédyma na parte debaixo do beliche e Cacau e Marco Antônio na parte de cima. Ih, mas aí não cabem a Patty, Dri e Lígia, calculava eu, a dona da casa e, desse modo, quem decidia questões mais delicadas como quem vai tomar banho primeiro ou quem dorme em qual cama.

– Ah, eu quero dormir com você na cama de casal, Lu!, protestava Márcia com uma ponta de ciúme.

– Mas não dá para colocar três pessoas grandes na cama de casal!, interferia Bila, que era magrela, baixinha e também ciumenta.

– Peraí, gente! Não vai caber todo mundo junto não. É uma questão de lógica. Três camas para dez pessoas!, falava Marco Antônio, o CDF em Matemática.

– É verdade, suspirava, vencida pela impossibilidade. 

- Tá resolvido: meninos num quarto e meninas no outro. Pronto e acabou, determinava.

Assim, Cacau e Marco levavam suas mochilas para o primeiro quarto do corredor e começávamos um novo arranjo para fazer com que todas as oito meninas coubessem no mesmo quarto. Acabava que quatro dormiam na cama de casal, Lígia, que era a mais gordinha na parte debaixo do beliche e Márcia e Dri na parte de cima. 

Camas vazias nos outros quartos e a gente se espremendo ali. Minha mãe não dava palpite. Eu achava isso legal: liberdade. Mamãe costumava dizer: “Se vira, você não nasceu quadrada”. Só mais tarde fui entender a importância destas palavras, mas ali já tinha uma ideia. Exercitava minha independência.

Na hora de dormir mesmo, porém, começava outro problema. Márcia era muito medrosa e batia o pé para fechar a janela do quarto.

– Mas Márcia, nós vamos morrer de calor aqui dentro!, reclamava Dedéia.

– Vamos parar com essa bobeira, dona Márcia!! Aqui é uma fazenda. O que pode aparecer? Monstros da noite?, brigava eu com minha autoridade de anfitriã.

– Não, não e não. E se aparecer?, retrucava ela com cara de choro.

A discussão explodia. Todas falando ao mesmo tempo, querendo resolver o problema que parecia sem solução. Era tanta bagunça que a gente nem percebia Patty levantando o dedo para pedir a palavra.

Ela era assim, de fala mansa e delicada. Nada parecida comigo, atrevida e briguenta. Ou com a Kédyma, decidida e cheia de opinião. Ou com a Bila, escandalosa e faladora de palavrão. E menos ainda com a Dedéia, irônica e cantarolante.

De repente, olhava para o lado e lá estava Patty com seu braço levantado há meia hora, coitada! Aí eu dava um basta e ordenava:

– A Patty quer falar!

Imediatamente, todas se calaram e  olharam para ela com cara de curiosidade. Afinal, Patty opinar sobre qualquer assunto era praticamente um acontecimento!

– Sabe o que é gente, é que tem um outro problema: aqui é muito escuro! Eu não consigo dormir no escuro. Dá para deixar a luz acesa?

– Ah, não! Mais essa!, bufávamos em coro.

– Não acredito. Uma não dorme de janela aberta e a outra não dorme de luz apagada. Desse jeito não dá, falava eu já ficando irritada com tanto lenga lenga.

– Olha aqui, se vocês querem dormir aqui neste quarto vai ter de ser como a maioria quer! Luz apagada e janela aberta e chega de confusão!, impus, encerrando qualquer possibilidade de argumentação.

As duas emburraram, mas acataram. E elas seriam bestas de perder a tagarelice animada das meninas até alta madrugada?




Comentários

  1. Ainda bem que a janela ficava aberta, viu... assim eu podia levantar no meio da noite devagarinho, como um fantasma, e chegar até ela, com os olhos estatelados para tentar conseguir enxergar ao menos um vislumbre de claridade, em meio ao breu total...rs. Caramba! Aquilo parecia o começo dos tempos, antes de Deus ordenar: "Faça-se a luz!" rs. Eu ficava angustiada quando chegava a hora de desligar o gerador, lembro bem disso. E um dia que vc, por piedade da amiga aqui, quase acatou a minha idéia insana de acender uma vela dentro do quarto? Dona Maria barrou logo: Vela, nem pensar! Estão malucas? rsrsrs. Aí pensei: Xi, é mesmo, se a vela cair, podemos morrer todos queimados aqui! Que horror! Aí sim, eu acabaria mesmo por ver "a luz", mas a eterna, né? Aí desisti da idéia...rsrsrsr

    Bjs
    Patty

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  2. Bons tempos! Realmente era difícil agradar a todos, mas sempre acabava dando tudo certo e os momentos na fazenda eram maravilhosos!
    Adorei relembrar!!

    Beijos,

    Marco Antônio

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  3. Lembro sim, Dri!KKK!

    Sua comadre não gosta destas histórias. Ela não tem o mesmo apreço pelas memórias infantis que a gente...

    Então prometi que iria, para evitar mais confusão, fazer um photoshop eliminando o nome dela de todos os escritos. Pronto, falei.

    Abreijos,

    Lulupisces.

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