A última companheira

A manhã é confusa, mas ela nem toma conhecimento. Despertador, cara amassada de sono, atrasada para variar. Sair de casa antes das sete é apelação. Principalmente quando se toma o derradeiro café com pão e se lança na rua pela última vez.

Mas ela continua impassível. No mesmo lugar de sempre. Creio que à minha espera. Sessenta quilômetros por hora na grande avenida. Os primeiros raios furam as nuvens brilhantes como se nada tivesse para acontecer. As manhãs de Brasília são tão poéticas! O pôr-do-sol é retumbante, porém nem sei se vou ver outro fim de tarde neste fim de mundo.
A rádio anuncia o desespero. Pessoas tomam as ruas, caminham para lá e para cá como formigas que perderam sua trilha. Há arrombamentos, saques, suicídios. Nada que não seja previsível em mais uma espera pela dizimação da espécie humana. Custo a crer que seja verdade. Agora é para valer. Será? Vou ouvindo e pensando e quase atravesso o sinal vermelho. Mas quem se importa nesta altura dos acontecimentos?
Ninguém. E muito menos ela. Parada em sua pose plácida. Aproximo meu carro do quebra-molas, saliência, obstáculo ou qualquer outro nome que se dê a este redutor de velocidade banal e enjoado dos asfaltos brasileiros. Esforço-me para lembrar se existem quebra-molas nos EUA, Japão, Tailândia e quase me esqueço de levantar os olhos e ver sua figura complacente.

Mais alguns segundos e eu teria perdido a oportunidade de encará-la. Ela pousada no cume do poste de iluminação pública. O corpo pequeno e compacto. A expressão de seriedade e alienação simultâneas pairando sobre o caos. Todo dia ela está ali, fazendo tudo sempre igual. Invejo sua persistência, sua obediência, sua missão, quando eu mal consigo esconder certo prazer mórbido em me livrar, forever, da rotina atabalhoada e perversa que criei para mim.

O mundo acaba hoje. Previram esta morte tantas vezes que já começo a me acostumar. Miro para cima e a observo. Tudo que eu peço a Deus, se ele existir e não estiver muito atarefado (coisa difícil nestes fins de tempos) é que eu morra em paz. Que eu morra em paz como esta coruja que sempre me espera.

Comentários

  1. Os textos da Luciana na maior parte das vezes são autobiográficos. Quando não são, refletem muito de sua alma e de seu atual estado de espírito.

    Graças a Deus este foi uma exceção!

    Acabei de falar com ela e ela está ótima. Super animada!

    Então, o que posso dizer? O texto é realmente muito bom, afinal conseguiu me deixar preocupada.

    Abraços

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    Respostas
    1. Queridíssima Larinha,

      foi instigante pensar que despertei em você uma sensação de desespero de fim de mundo e de fim da minha jornada. É um elogio fantástico para um escritor.
      Agora acabo de me lembrar do episódio com diretor de cinema Orson Wells. Ele fez um programa de rádio anunciando o fim do mundo e boa parte da população acreditou. O tumulto foi grande e rendeu até um filme depois. Então estou toda prosa, atacando de Orson Wells? Ganhei o dia!!

      Beijão e desculpe-me por tê-la assustado. Não foi mesmo a minha intenção.

      Lulupisces.

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  2. "Viva cada dia como se fosse o último,e um dia você estará certa"...bendita rotina...sua e da coruja...bj.Namastê!
    Cynthia

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  3. Olá super iluminada mestra,

    muito boa essa frase... É de quem mesmo? Eu adoro corujas. Sei lá, já escrevi sobre isso aqui no blog. Talvez pela sabedoria solitária delas. Talvez por ter tido um contato de primeiro grau com uma altiva mãe-coruja no telhado da casa da fazenda. Subi lá para ver os filhotes no ninho e de repente ela surgiu voando baixo, asas enormes. Foi lindamente assustador!!

    Um abraço apertado de quem te admira,

    Lulupisces.

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  4. Coruja!!! Símbolo da sabedoria... Por isso ela te persegue. Vc é muito SÁBIA!!! Escreve lindamente...

    Ambrosina

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  5. Também adoro corujas, conectam 3 lugares significativos pra mim: Unicamp ao entardecer, Brasilia e São José dos Campos!

    Elisabeth Ratz

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  6. Muito bom, sempre!
    Gostaria de ter uma coruja, mas não para criá-la presa. Então, não tenho.

    Ana Cristina Nogueira

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