Cenas implícitas

Outro dia estava reparando como meu filho de dez meses, sempre que chega à garagem do prédio, olha para todos os lados numa curiosidade e atenção incríveis. Parece que o guri vive uma eterna estreia, uma ininterrupta primeira vez. Esse olhar inédito dos bebês para o trivial é algo fantástico. E me leva a um postal publicitário que fica pregado na minha mesa de trabalho: “Denise Stoklos em Olhos Recém-Nascidos”.

Caramba, como gosto do título deste espetáculo que nunca vi. É uma falha no meu currículo teatral: ainda não tive a oportunidade de assistir à multifacetada artista Denise Stoklos, snif. Mas o desenho no postal me lembra da necessidade de fechar os olhos e reabri-los inéditos na piscadela seguinte.

Ver, olhar, mirar... Neste tempo da cegueira individualista e grosseira que corrói as pessoas nas cidades deste mundão de Deus, a gente precisa cultivar a pureza do olhar. Ter olhos recém-nascidos para levar a rotina com mais delicadeza. Acreditar no prazer de descobrir curiosidades nas atividades mais prosaicas e de se permitir ficar bestando, como os bois que pastam naquela poesia linda do Drummond:“Cidadezinha qualquer”.

Afinal, a “Eta vida besta” é uma delícia! Mas é tão difícil de alcançar para tantas pessoas presas em obrigações inadiáveis, horários rígidos, agenda lotada. Por que a “Economia do Ócio” é bestseller na teoria e um total encalhe na prática? Não estou pregando a irresponsabilidade, nada disso. Apenas a primazia do sentir sobre o fazer.

Pode existir algo mais grave do que fazer sem sentir? As manifestações sem sentimento que vemos todos os dias pela rua... A falta de gentileza das pessoas; as explosões de violência sem sentido (repare aí de novo o sentir na origem da palavra), nos dão o alerta: reinventar é preciso para que não sejamos esmagados por nossas próprias mãos.

A grande sacada é misturar um pouco da formiga com a cigarra e tocar a vida com mais bossa. Somos ou não somos um povo cheio de ginga? Portanto ela precisa servir para algo mais do que apenas bailes funks. Quando vejo cenas da nossa juventude achando que curtir a vida é se embebedar, tomar drogas sintéticas e se esfregar seminus uns nos outros, aparece no telão da minha mente “2001 – Uma odisseia no espaço” e aquele macaco lançando seu pedaço de osso para o futuro. O futuro é isso? Uma festa rave?

O filósofo Bertrand Russell afirma: “o aprendizado de curiosidades não apenas torna menos desagradáveis as coisas desagradáveis, como torna ainda mais agradáveis as coisas agradáveis”. É isso! É olhar para a garagem da casa de todo santo dia com um viés curioso, desbravador. É evoluir para a sublimação, para o intocável. Nem tudo precisa ser explícito para ser verdadeiro e bom.

É imitar os olhos recém-nascidos dos bebês para iluminar a rotina. É ser contemplativo e incorporar o que Adélia Prado poetiza: “Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento”.



Comentários

  1. É "Elogio ao ócio", concordo com o autor e com você, temos que ter mais tempo para fazer coisas além de trabalho e casa.
    Alexandra.

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    Respostas
    1. Olá Alexandrovsky!!!

      Surpresa boa encontrar você aqui no blog! Obrigada!
      Poizé, nessa tal evolução do feminismo, quem se deu foram as mulheres. Sobrou tudo para a gente!!!

      Vamos chutar o pau da barraca!!KKKKK!!

      Beijos,

      Lulupisces.

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  2. Tô sentindo que nossos escritos têm vocação pra se esbarrar. =)

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