Mais estranho que a ficção*

Imagina a cena: você esbarra no shopping, às 18 horas de domingo, cabelo molhado, esbaforida, com a ex-terapeuta e o ex-psiquiatra sentados à mesa tomando um café. Não, não é roteiro do Woody Allen, mas bem que poderia ser.

Já viajo nos diálogos sacados e sarcásticos que o bardo das neuroses urbanas inventaria para tal situação. No mínimo, embaraçosa. Afinal, ali estão as duas pessoas que conhecem de perto as suas sombras. Você está de frente para o crime que você cometeu. Qualificado. Também, quem mandou se tratar com um psiquiatra que é casado com uma terapeuta e vice-versa?

Então você finge que não viu, volta para a escada rolante, faz que vai embora e retorna mais tarde? Não, o cinema já vai começar e, além disso, ela já te viu. Malditas mulheres! Sempre alertas, viciadas em assuntar com olhos de claraboia. Se fosse ele, o psiquiatra, passava batido. Continuava bebericando seu café focado apenas na sua xícara. Merda!

- Oi Luciana! Ela vai se levantando em minha direção... (Meu Deus, ela ainda lembra o meu nome).

- Oi Ana Cristina! Beijos e abraços afáveis e loucos para sumir na sessão escura.

- E a reforma do apartamento? (Caracoles, ela ainda recorda o assunto!!! Por quantos encontros terei infernizado a coitada com os meus delírios arquitetônicos?)

- Ah, já terminou. Ficou maravilhosa! Esse aqui é o Bernardo. (Ahã, então é ELE que tem ciúmes do Fabrício Carpinejar? Ana Cristina deve ter sorrido por dentro como boa mulher que é, apaixonada por uma revelação picante).

Eu não quero olhar, mas o psiquiatra tá ali, de cara para mim. Vou ser obrigada a fazer vezes de educada...

- Bernardo, e esse aqui (estou tão nervosa que esqueço o nome composto brega do psiquiatra)... Vacilo por alguns segundos... - E esse aqui é o Pedro Paulo. (Ahã, então é ESSE o escroto que cobra 400 reais a consulta e pensa que o meu dinheiro é capim? O físico franze o rosto e mentaliza uma cena de agressão desmedida para o fim do domingo).

- Como você está? Pergunta, alegrinha, a terapeuta e eu penso: seria um questionamento retórico ou uma fast análise?

- Tô bem, está tudo bem. Agora estou ótima e agradeço muito a vocês dois por isso. (Momento “Puxar Saco também Faz Parte”).

- Estou vendo, você está com a cara ótima! Intromete-se o psiquiatra. Já está até namorando... (Os meus cabelos molhados poderiam sugerir que eu tinha acabado de sair de algum motel?)

Tive vontade de dizer: Poizé, Pedro Paulo, a minha boca já está falando como os meus olhos e os meus olhos como a minha boca, não é legal? (Detalhe: esse é o bordão que o doutor de gente desconectada fala para todos os pacientes quando ainda não estão devidamente medicados com psicotrópicos e ansiolíticos). Mas então respondo algo catastrófico:

- Não, não, esse aqui é o meu marido! (Ainda bem que eu estava de costas para o Bernardo que, depois dessa, deve ter franzido o cenho novamente pensando em cometer um duplo assassinato. Qualificado.)

Saio correndo puxando o par pelas mãos e me afundo na cadeira do cinema. Finalmente anônima.



*Título em Português de um filme muito bacana, entre os meus favoritos, com a maravilhosa Emma Thompson.

Comentários

  1. Caracas!

    Este psiquiatra nunca ouviu falar de ética?

    Já pensou as mil e uma interpretações que este comentário pode dar?

    E se você estivesse com um cara que acabou de conhecer? De cara ele já ia entregando que você é do tipo que gosta de discutir o relacionamento etc. etc. etc.

    E se o Bernardo nem soubesse que você frequentava um psiquiatra?

    Olha... Quanto mais eu ouço estórias de psicólogos e psiquiatras mais distância eu tomo dessa gente.

    Já sei... já sei... você não precisa dizer todos os benefícios que colheu de seus tratamentos...

    Mas para mim infelizmente não funcionou e para o Rodrigo, até agora pelo menos, também não. Ainda que hoje ele esteja indo a um novinho em folha. Vamos ver no que vai dar...

    Beijos

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  2. Noooossa essa foi demais!Se o Woody Allen soubesse, com certeza, se inspiraria nessa história, e olha, daria um excelente filme.bj.Namastê!
    Cynthia

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    Respostas
    1. Daria mesmo, né superteacher!

      Pena que eu não tenho o talento dele para tirar todo o potencial de uma cena hilária como essa!! Mas até que a tentativa saiu um cadiquim divertida!

      Beijos e obrigada,

      Lulupisces.

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  3. Nossa Luciana, voce estracalhou com essa cena de filme!!!!

    Queria ler mais!!!!

    Beijos,

    Eve

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  4. kkkkk Adorei Lu!

    Por isso quando ia ao psiquiatra levava o Romeuzinho junto as vezes para as intermináveis DR, que agora aboli da minha vida... Meu querido papai ma acha uma louca, porque pisou no meu calo grito na hora não importa onde estou e com quem...

    Me julgo nesse direito depois de 25 anos de casada e 50 de vida, quero ser feliz não importa como...lógico que não desrespeito ninguém... Só não fico mais naquela de jogar a sujeira pra debaixo do tapete e fazer cara de samambaia. Quando não gosto de algo, vomito tudo pra fora na hora mesmo.
    Ah, antes o meu psiquiatra me fez fazer um curso de comportamento assertivo. Me sinto leve como uma pluma!

    Bjs,

    Renata.

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  5. Ah, eu também adorei esse encontro a la Woody Allen. Foi muito divertido! E rendeu um bom texto, o que me deixa ainda mais realizada.

    Não senti vergonha nada, só estava achando tudo bastante absurdo e cômico. Até agora eu rio da minha resposta: não, não, esse é o meu marido!! HAHAHAHAHA! Louca total!HAHAHAHA!!!

    Beijo e obrigada pelos comentários, galera!!

    Lulupisces.

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  6. Lu querida, seus textos são ótimos, mas este está realmente hilário!! Encontrar uma dupla assim indo pro cinema ninguém merece MESMO.

    Morri de rir aqui lendo vc. Bjs. E muitas, muitas saudades querida amiga.

    Hylda.

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  7. Putz, já fiquei imaginando o Woody se tremendo todo na frente dos analistas, suando frio, passando mal e os delatores ali na frente, jogando por terra todos os segredos de alcova antes confidenciados por ele e o pobre vendo o casamento ir pelo ralo naquele momento... rsrsrs!

    AMEI!!! DIGNO DE HOLLYWOOD!
    Bjs
    Patty

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  8. Patty,

    exatamente isso!! Quase morri de rir do inusitado da cena. Foi tão divertido!!! Queria colocar esse texto por baixo da porta do consultório da Ana Cristina. Ela é uma ótima terapeuta, por sinal!

    Beijão,

    Luzinha.

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  9. Oi Luciana,

    te agradeço pela mensagem carinhosa de ontem. Realmente, não aderi muito ao voyeurismo do fb, mas pude encontrar pessoas que foram/são importantes pra mim.
    Tenho acompanhado seus textos, eles são você toda, com seu estilo maravilhoso e todo peculiar. Busquei o texto em que sou seu personagem e adorei. Bons tempos aqueles, não?

    bjs,

    Alexandre.

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  10. Caríssimo cancioneiro, obrigada!!

    Ótimos tempos aqueles. E nossos reencontros ao longo da vida dariam um filme doce, meigo, de encantar multidões. Quando lembro daquela primeira vez em Campinas quando te reencontrei na primeira noite num bar... Você encostado na pilastra com uma barba irreconhecível... Muito bacana!

    De vez em quando eu relembro essas histórias mágicas para as amigas que ainda não as conhecem... O FB é uma invenção interessante por isso: por fazer a gente se reconectar (se quiser) com pessoas que sumiram do nosso campo de visão. Não deixe de aparecer, OK? Beijão!!!

    Lulupisces,a eterna menina de trancinhas.

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  11. Luciana!
    Adorei o texto como sempre muito bom! Fez me rir muito nesse começo de semana! Beijos
    Andréa

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  12. Lú, achei muito bommmmmmmmm!!!

    Grande abraço,

    Balbina Eunice.

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