Planetária

Há momentos na vida que a gente protagoniza cenas de globalização encantadoras. Porque ainda é raro no Brasil a gente experimentar essa sensação de aldeia global. Não se enganem, tupiniquins, a América do Sul permanece fim do mundo selvagem para a média da população mundial.

Quem sabe agora, com a Copa as Olimpíadas, a gente consiga quebrar a resistência dessa turma e traga hordas de turistas estrangeiros para apreciar nossa alegria de viver (traço fundamental da identidade cultural do brasileiro, segundo Darcy Ribeiro e Luciana).

Quando vivi em NY pude participar de perto dessa vida sem fronteiras. Pessoas de todos os lugares do mundo convivendo e se entendendo no verdadeiro esperanto: o inglês. Que me desculpem os desafetos dos Estados Unidos, mas não há língua mais tranquila de aprender do que to be or not to be. Todos os outros idiomas são demasiado complexos em conjugações, gêneros e graus. O inglês é prático e democrático, apesar de o Tio Sam nem sempre agir como tal.

Mas estava aqui sentada de frente para a tela do computador esperando a mesma previsível segunda-feira: burocracia no trabalho; faxineira a procurar; consulta dos meninos a marcar... Quando surge uma asiática franzina -- redundância?  -- escoltada por um dos corpulentos (e às vezes truculentos) seguranças do tribunal. A menina havia sido “presa” em flagrante tirando fotografias nas dependências da corte superior, coitada! “Disseram que ela estava fotografando o ponto biométrico, doutora!”

Aí já era intolerável. Uma espiã, só podia ser!! Mais uma prova de que ainda somos jecas demais, provincianos demais. Servidores se sentiram incomodados por uma típica turística japa com sua bela e poderosa câmera fotográfica. Pobre da moça! Tratada como uma subversiva dos tempos de chumbo... Sorte que trouxeram a garota para o lugar certo, ou seja, para mim. A defensora dos pobres, oprimidos e cosmopolitas.

Tranquilizei a equipe de segurança, que já estava mobilizada (acreditem!!!). A guria só queria mesmo fotografar a beleza arquitetônica de Oscar Niemeyer, de quem ela sabia muito mais do que os seguranças sequer um dia saberão sobre a Coreia, o país-natal da “potatopak” (nickname da viajante no e-mail). Ming simpática e apaixonada pelo Brasil. Fotógrafa profissional em Seul, acostumada a clicar passarelas, modelos e celebridades, resolveu tocar um projeto pessoal muito diferente de tudo o que já fez até hoje.

Encantou-se com a mulher brasileira que viu numa imagem de TV na infância: “so confident! So independent! Very different from us, koreans”. E aí desembestou para o Brasil com sua mochila cheia de equipamentos fotográficos e disposição para conhecer as “Marias” deste país tropical abençoado por Deus.

O projeto da menina: conhecer Maria da Penha ao vivo e em cores. Sim, meus leitores, a menina lá de Seul é impressionada com a história de valentia e cidadania de Maria da Penha, aquela da lei batizada com o mesmo nome e que quase morreu de tanto apanhar do inimigo, aliás, marido... Que coisa, não? Lá do outro lado do mundo e antenada com as leis brasileiras.

Que motivações levaram essa pequena a desbravar o bravio horizonte brasilis? Uma terra que persiste em tratar mal os próprios cidadãos não pode entender os forasteiros. E não venham com esse papo furado de que o país trata bem os turistas de fora... Recordo que fiquei envergonhada quando meus amigos austríacos vieram ao Brasil e eram importunados a todo momento por vendedores ambulantes inescrupulosos, por pivetes, por gente querendo tirar proveito de quem não conhece nosso "jeitinho brasileiro" nefasto.

Espero que não cheguemos ao ponto de virar argentinos. Os portenhos costumam cobrar preços diferentes, isto é, mais caros, dos turistas estrangeiros para prestigiar alguns espetáculos. Mesquinho, pequeno, patético.

Ainda bem que o destino me colocou no caminho de Ming. Desenferrugei o inglês ao mesmo tempo em que me senti planetária na essência. Dádiva.

Música-tema de hoje:


Comentários

  1. Gostei da sua mensagem sobre o evento envolvendo a fotógrafa coreana.

    Você tem acompanhado essas reportagens sobre o fluxo de estrangeiros vindos para o Brasil, para trabalhar?
    Surpreendente não?

    Um beijo,
    Paulo.

    ResponderExcluir
  2. Me sinto bem planetária lá no Rio, imagine em plena Copacabana e Ipanema, parece até que vc é quem está em outro país (se conseguir abstrair a questão do ambiente mega brasilis, é claro), de tanto gringo ao seu redor, adoro ficar ouvindo aquela babel, mil línguas diferentes, mas com predominância do inglês, francês e espanhol. Algumas é até difícil de distinguir... ouvi uma portuguesa falando e achei muito estranho o modo de falar dela, sei lá, não parecia o português de Portugal que conheço, mas era, acho que ela atropelava as palavras demais, muito rápido... o melhor é conseguir entender de passagem alguns fragmentos das conversinhas dos franceses, nada como ouvir um francês bem legítimo e nas minhas terras!

    bjs
    Patty

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos