As paralelas ainda vão se encontrar para um café

Segurou a minha mão por uma hora inteira.
Não tem santos estigmas, só escaras
e a vida que vive nele e o faz brandir, profeta no seu jejum:
Ter nascido já é lucro.
(Adélia Prado)

Mamãe, por que a gente morre quando tem cem anos?, indaga Romulito em nosso caminhar entre a Red Ballon e o apê. Essas caminhadas semanais são sempre momentos de pura filosofia... Às vezes a gente para na São Camilo de Lellis e entra em comunhão com Jesus Cristinho. Rômulo gosta de igrejas, assim com eu. Menina de rituais...

Pra quê serve isso aqui, mamãe? Para colocar a Bíblia (nem sei se é para isso mesmo, mas o menino carece de respostas para tudo). E aquela cadeira? E aquela cruz? E o que o padre faz? Na nossa parada na nave da São Camilo rola muita coisa, menos reza. Ou seria o afeto mãe&cria também uma forma de oração?

Pois é, quem dera vivermos todos até os cem anos. E ter ciência disso. Pronto, decidido. Daqui para frente todo mundo vive até os cem anos, nem mais, nem menos. Se a gente viesse ao mundo – ou a esta encarnação – sabendo o fim que nos espera, pouparíamos tantas dores, dilemas, inquietações e o indefectível medo da morte. Porque o receio, creio eu, reside mais em não sabermos em qual dia ela chega de fato do que de morrer em si.

Morrer sem estar preparado. Sem comprar a casa própria, sem fazer a viagem dos sonhos, sem casar, deixando os pequenos órfãos, sem ter visto o sol se pôr, sem conhecer o mar. Morrer de repente, no passeio com o filho entre a 303 e a 304 sul... Abotoar o paletó na fila do caixa eletrônico, no meio de estranhos, como aconteceu com o amigo de uma colega do trabalho no dia de ontem.

Essa imponderabilidade da morte é demais, não? Não ter ideia se estamos num campo de gravidade zero ou em queda livre... Se a gente tivesse a tal certeza da morte em prazo fixo, economizaríamos horrores em psiquiatras, remédios para dormir e para o colesterol alto, terapias, pânico de avião, livros de autoajuda, videntes, advogados, florais e homeopatias.

Eu nunca mais pensaria duas vezes antes de atravessar a rua. Cruzaria o Atlântico a dez mil pés sem grilos e não ficaria de coração na mão quando meus filhos entrassem no carro de outras pessoas para ir passear. Como se eu mesma já não tivesse batido o meu com Tomás de meses de idade no banco traseiro... Morrer aos cem nos daria garantia de viver sem contratempos.

E essa serenidade daria plenitude a todo mundo. Ninguém mais reclamaria da falta de justiça da morte. Por que aquele bebê se foi? Por que mamãe (marido, madrinha, primo, cachorro) se foi? Ainda na flor da idade, tão novo, que triste. Acabariam as revoltas com o assassinato dos inocentes em guerras, chacinas e diárias vilanias urbanas. Ninguém mais perderia tempo pensando que se já está mais pra lá do que pra cá. A velhice seria naturalmente vivível, sem dramas de encontrar o santo graal da juventude.

Em compensação, se morrêssemos no nosso centenário, não haveria mais indagações do quilate de Drummond: “Por que as mães vão-se embora?” Ou as constatações de Vinícius: "Quem sabe a morte, angústia de quem vive..." Morte e vida Severina não teria sido escrito. Sócrates não teria sido obrigado a tomar cicuta e toda a civilização grega, o pilar filosófico e dramatúrgico da humanidade, estaria capenga, o que contaminaria a possibilidade de Freud, Jung, Carl Sagan, Einstein, Cora Coralina, Chico Science e Van Gogh terem sido o que foram.

Nada de questionamentos, de surpresas, de sustos. De poemas, odes, dissertações, monólogos, epitáfios inspirados, doutrinas e religiões que procuram aplacar a morte física e espiritual. Ou seja, seria o fim do ritualismo de chegada e partida dos homens. Seria a morte da humanidade no que ela tem de mais belo: a fragilidade.

Por isso me resigno e elejo a dúvida. Viver até os cem anos seria chato se fosse para todo mundo. Afinal, é a exceção à regra que move a grandeza da existência.


Comentários

  1. É raro alguém hoje em dia refletir acerca da morte sem medo. Isso deveria fazer parte do homem atual. Seria menos doloroso para quem fosse ( para o Hades, Nirvana, Céus, Infernos, sei lá...)ou para quem ficasse.

    Eu, por exemplo, sempre digo aos meus pares: "quero morrer lendo e escutando os clássicos". Contudo, tenho a certeza de que o medo ainda irá comigo, mesmo depois de minha partida, mesmo porque não sou nenhum Sócrates! rs rs.

    (Regis)

    (Regis

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  2. PRIMA LINDA,O RÔMULO VEIO DE ENCOMENDA, NÉ?CARACA!COMO FAZ PERGUNTA ESSE GAROTO.GOSTO DISSO, SÓ QUE TEM HORAS QUE FICO SEM AÇÃO!!KKKK O TOMÁS FAZIA OU FAZ TANTA PERGUNTA COMO ELE?PQ NÃO VEJO VC FALANDO DAS PROEZAS DE TOMÁS

    Beijo,

    Dje.

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  3. Amada prima,

    Tomásito deve ter seus questionamentos internos, mas nunca foi de externar suas dúvidas filosóficas a favor ou contra o mundo.:) Ele é light!!!:).

    Beijão,

    Lulupisces.

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  4. Não sei se ajuda na discussão, mas na relatividade geral (de Einstein, é claro), estar em queda livre ou numa região de campo gravitacional nulo é a mesma coisa.

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  5. Eu tenho medo de morrer de uma hora para outra!

    Não porque eu não saiba o que me espera. Muito pelo contrário. É porque eu sei exatamente o que me espera!

    Ainda bem que há o alívio de saber que poderei voltar e tentar de novo.

    O problema é que talvez não seja mais neste planeta. Serei uma exilada da Terra.

    Neste caso, enquanto a maioria torce para a Terra chegar logo a mundo de regeneração, eu não tenho a menor pressa. Assim, quem sabe dá tempo de eu me candidatar a uma vaguinha.

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  6. Profunda e bela reflexão sobre a única certeza que temos ao encarnar nesta existência, ela , a morte! Aqui e agora é o grande momento onde desenvolvemos todas as habilidades, onde temos todas as oportunidades de aprendizado, e é exatamente nesse momento em que começamos a refletir sobre, é que vamos desenvolvendo a capacidade de compreensão de como a vida, a nossa grande escola, o nosso palco, onde representamos nossos romances, dramas e comédias, tem o seu início, seu meio e seu fim.Não um final, mas sim um ciclo que termina para que um outro possa ter início, como um ponto e logo após a vírgula.,as curvas fazem parte da estrada,(dúvidas, obstáculos) cabe a nós termos a atenção, o discernimento, a clareza e a flexibilidade para transitar calma e serenamente,respirando profundamente, por esse caminho, que nos levará à Luz a "grandeza da existência".
    Nossa Lu, esse tema me encanta, me motiva a continuar buscando o verdadeiro significado de estarmos aqui, todos,como numa grande rede Cósmica, não somos iguais,( por isso seria chato se vivessemos todos cem anos!) somos únicos, unos com o Uno, por isso penso que cada um terá o seu tempo (pré) ou não determinado? "E a pergunta rola...e a cabeça agita, eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, e é bonita, e é bonita..."

    Bjs.Namastê!
    Cynthia

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  7. Opa! Este está especial! Muito bem, Lu! Adorei!
    Lembrei do livro "As intermitências da morte", do Saramago. Já leu? Totalmente em harmonia com o seu inspirado texto.
    Bom demais! Vai bombar no blog.
    Beijim,
    Mônica

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  8. Caros comentaristas,

    Esse tema também me fascina, pois a morte esteve desde tenra idade na minha vida... A gente que convive tão de perto com ela fica amiga meio íntima, daquelas que você quebra o pau, mas não vive sem... Daquelas que você discorda, mas não tem como não aceitar...

    Sabia que o Bernardinhos iria apresentar sua explicação Física para a imponderabilidade... Nada como atravessar o samba da Física..:)

    Quero o livro do Saramago emprestado.

    Abraço fraterno,

    Lulupisces.

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  9. Êpa, cheguei atrasada... rs. Mas ainda há tempo de comentar, afinal, estou viva...rsrsrs

    Aos 40 anos estou achando que a vida é tão curtinha! Será que é por que a minha vida é muito regular? Será que quem sabe aproveitar mais e melhor a aventura de viver sente o tempo de forma diferente? Acho que sim.

    Dia desses ia te perguntar o que vc acha, Luzinha, de viver para sempre... mas assim, bem, saudável, todos, vc, marido, filhos, amigos... um retrato do que é hoje, entende? Não estático, a vida caminhando, mas ninguém envelhecendo. Que nos mantivéssemos física e mentalmente na casa dos 50 anos, digamos. Acompanhando as evoluções (ou involuções?) da humanidade. O que acha? Viver cansa? Ou não?

    Bjs
    Patty

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  10. Pattyamada, você nunca está atrasada neste blog!!!

    Viver cansa? Acho que sim... Mas não. (Tô parecendo o Gilberto Gil). Minha madrinha viveu até os 95 anos. Ela dizia que já estava um pouco cansada de continuar existindo porque todos os irmãos e amigos partiam antes dela. Entretanto ela queria viver até a copa de 2014, pode?:) Ela queria ver o Brasil sediar a copa e assistir a algum jogo.

    Então, sei lá entende, é complicado... Se eu viver como a minha madrinha, ou seja, lúcida, ativa, independente até quase cem anos, eu quero chegar lá. Mas se for para perder a razão, melhor que a morte me chame na hora mais certa. Se é que existe certeza para isso.

    Beijão,

    Luzinha.

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  11. Belas e profundas reflexões, inquietações do estar vivo...

    Grande beijo,
    Nena.

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