O milagre dos pés de galinha


Era um daqueles dias chuvosos típicos de São Paulo e um amigo de infância me esperava na Avenida Paulista, sob a marquise do 1.698. Combinamos almoçar num self-service de comida chinesa para discutir poesias e matar as saudades de Brasília, nossa cidade natal.

Meio-dia, hora de ir para o ponto de ônibus. Meu guarda-chuva de florzinhas rosas era mais um entre centenas, compondo um cenário único: miscelânia de cores e grafismos em sobrinhas transitando erráticas... Belos cogumelos made in Taiwan, China, Hong Kong... Por que estes objetos sempre nos remetem à essência oriental?

Peguei a linha Pinheiros. Estava vazio e pude contemplar a paisagem urbana sentada confortavelmente colada à janela. O vidro embaçava com o calor da respiração. Passava as costas da mão para recuperar a imagem cinza daquele dia de maio.

No começo da Paulista, uma velhinha acompanhada de uma menina subiram no ônibus. A senhora sentou-se ao meu lado enquanto a garota correu animada para os fundos, sentando-se na última dupla de cadeiras. Fotografei com rapidez as roupas simples e úmidas daquela mulher: um casaco velho azul-marinho, saia marrom, tênis tipo conga, um lenço pardo que escondia cabelos brancos.

A velha era simpática. Abriu um claro sorriso para mim, revelando uma profusão de rugas. Lembrei-me da tia "Nastácia" do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ela me pareceu assim: uma negra bonachona.

- Você sabia qui ela num andava inté um tempo atrás?

Eu, que seguia distraída mirando os suntuosos edifícios da Paulista, assustada virei-me para ela e perguntei:

- Hã?
- É, ela num andava, sabia?

Percebi que a velhinha estava a fim de um dedo de prosa. Mas quem, afinal, não andava? Aquela menina sapeca que entrou com ela e havia corrido com desenvoltura para o final do ônibus?

- É mesmo?, perguntei realmente curiosa.
- Pois intão, num sei, mas ela nasceu assim: num andava e num falava. Mi deu um trabaião, mais é tudo nessa minha vida, confessou abrindo outro sorriso.

Olhei discretamente para o fundo. Queria ver melhor aquela mocinha de uns 12 anos. Lá estava ela, sentada balançando os pés, com trancinhas nos cabelos e uniforme de escola pública.

- Eu levei ela num monte di hospital i os médicu num discubriam porque é que ela num andava e num falava. Aí um dia eu tava com ela num ônibus i uma senhora viu ela ingatinhá qui nem bebê i perguntou: "Por que ela não anda? Ela já está tão grande...” Eu disse qui num sabia e foi então que ela me insinô uma simpatia, contou a simpática velha sem eu pedir, mas ouvindo com muito gosto.

Uma simpatia? Não, não era possível que superstições houvesse curado aquela garota. Eu não era uma pessoa de acreditar nestas coisas. A velha percebendo a minha desconfiança, continuou:

- É, uma simpatia. Ela falou pra mim: pegá cinco pé de galinha, sim limpá nim nada e faz um caldo. Eu tinha que dá pra minina tomá trêis veiz por semana qui ela ia miorá.

Pés de galinha? Não consegui conter uma cara de nojo. Eu detesto pés de galinha, são grotescos!

- Aí fui inté uma granja que tinha lá perto di casa e pidi uns pé. Eu queria comprá, mais cumo ninguém compra pé di galinha, né mesmo? (e sorriu novamente). Então o moço mi deu um saco cheio de pé cum unha i tudo. Pio é qui eu num pudia nem limpá os danado se não a simpatia num funcionava.
- E a senhora fez o caldo?
- Pois sim! I dei treis veiz por semana pra ela. Im pocos mês ela tava firmando as perna, garantiu.
- Uau, isso é inacreditável!
- Nim eu criditei. Us médicu num discubriram i uma simpatia curô minha neta. Nu começo eu ficava meio discunfiada. Fui inté à Lapa com ela a pé, só pra vê se ela tava boa das perna mesmo. Inté hoje eu rezo pra essa sinhora que mi insinô a simpatia. Qui Deus ilumine os passo dela! Se ocê repará bem, ela ainda fala argumas palavras errada, mas é bem poco. Vamu, Ana Paula!!!

A menina olhou para avó e pulou esperta para a porta traseira. Ao se levantar, a velhinha ainda falou: Cumo ia sê bom si tivesse simpatia pra curá tudo o que é dô, num é?

Observei pela última vez a menina descendo os degraus do ônibus ajudando a avó. Segui as duas com o olhar enquanto o carro acelerava forte.

Meu ponto chegou. Desci. A chuva caia insistente. Abri meu guarda-chuva de florzinhas rosas e fui ao encontro do meu amigo, sorrindo sozinha um sorriso bonachão.

Comentários

  1. É como diz o velho deitado (ou a velhinha sentada?)Superstição e canja de pé de galinha não faz mal a ninguém, pelo contrário... rsrsrs

    Beijos
    Patty

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  2. Incrível né?

    A fé desta velhinha foi tão absoluta que ao preparar o caldo ela conseguiu plasmar nele o remédio de que a neta precisava.

    Tem um caso muito conhecido na literatura espírita de uma senhora que foi ao médico e ele lhe prescreveu um remédio.

    Como ela não tinha dinheiro para comprar o remédio, ela rasgou a receita na quantidade exata de pedacinhos de papel correspondente ao número de pílulas e tomou e tomou conforme as orientações do médico.

    E ficou curada...

    A fé remove montanhas!

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