Por quem os sinos dobram?





para Jandyra Salles Nascimento, com amor



Igreja, todo mundo sabe: é lugar santo. Entretanto, a Catedral Metropolitana de Brasília não me parecia assim naqueles tempos. 

Atravessava aqueles sótãos (seriam mesmo sótãos, se não estavam em cima, mas ao lado, escondido pelas alvas paredes?) galopando nas molecagens que sempre me acompanharam e que me faziam sonhar.

As curvas de Niemeyer... Mármore lívido que nada mais representavam que graciosos escorregadores maculando saiotes, vestidinhos e calcinhas com a poeira vermelha do planalto central.

Dindinha ralhava, repreendia, mas a teimosia de menina curiosa me convidava a gritar, gritar, gritar... O som ecoava no vazio daquele imenso castelo transparente. O sol transpassava o vidro e caía bem em cima da minha cabeça. Era uma luz que só vendo!

Anjos solenes planavam pelo céu ao mesmo tempo em que não tiravam os olhos divertidos de mim. A inocência me defendia de qualquer pecado. E os porões mal iluminados (poderiam ser chamados assim, se estavam ali ao lado, por detrás daquelas paredes brancas?) me pregavam sustos quando descobria alguma imagem sacra deformada pela imaginação tomada pelo pavor.

Comi hóstia pela primeira vez aos sete anos. Irmã Gorete abriu um saco cheio de pastilhinhas madrepérolas:

- Tome uma. Esta você pode provar, pois ainda não foi benzida pelo monsenhor Ferreira Lima.

Saí correndo e sentei na cadeira que fizeram para o Papa João Paulo II quando veio à Brasília. Acho que fui a única criança brasileira a sentar na cadeira bordada em fios de ouro embalada em plástico como relíquia valiosa. Também assisti de camarote ao Papa tomar uma xícarazinha de café bem nacional na cozinha da catedral. Ele passou sua mão santa sobre a minha cabeça. Quisera eu ter entendido a preciosidade daquele momento naquele dia. Mas enchi o peito de orgulho infantil. Julguei-me muito importante.

Outra vez mexi nos botões bem guardados num cômodo proibido para “pessoas não autorizadas”. Os sinos bimbalharam fora da hora e eu ganhei uns beliscões disciplinadores da madrinha.

Agora, quando volto ali, naquele salão da minha infância, apenas busco em meus olhos a emoção dos fins de semana do passado. De mãos dadas aos meus filhos, tenho vontade de incitá-los à travessura: Vão, vão, corram! Procurem o sótão, desçam ao porão... Gritem, gritem! Os anjos lhes guardarão de todo mal, amém!




Comentários

  1. "A inocência me defendia de qualquer pecado"

    Queria poder me lembrar dessa sua frase em todos os momentos que o juiz dentro de mim julga, condena e sentencia.

    Valdeir Jr

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  2. Parabéns pelo aniversário de blog! Caiu na rede de vitrais da Catedral é... poesia.
    Platz

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  3. "Aqueles escorregadores de mármore"... Ah, são mesmo inesquecíveis!

    Débora Lacerda

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  4. Lu, você tem um olhar único e ainda me encanta com seus escritos. Me transportei para a catedral e quase pude sentir o papa passando a mão na sua cabeça.

    Hermínia Oliveira

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