Graça recebida

Te contei do encontro que tive com o meu anjo da guarda? Aliás, acho que devo ser uma pessoa de sorte porque, na verdade, foram três anjos da guarda. Eu nunca levei muito a sério esse papo de metafísica. Apesar de ser pisciana e, segundo os entendidos, os peixinhos terem uma conexão direta com o plano espiritual, não acreditava que este lance de ser tocada por uma luz inexplicável seria para mim. É que sou peixe arisco, desconfiado das boas intenções as quais, proclamam os pessimistas, o inferno está cheio.

Recordo do meu irmão mais velho e de suas experiências com os livros do Lobsang Rampa, tentando alcançar o nirvana ou mesmo algo mais simples, como conectar com o espírito do nosso pai em algum plano superior (a gente nunca espera que um ente querido esteja mergulhado em enxofre, mas rodeado de liras, deitadinho numa nuvem de algodão). Mas isso era o mais próximo que havia vivenciado em termos de outras dimensões.

E então aconteceu, e até hoje é um fato que me cobre de assombro. Estava no Rio de Janeiro, lugar de gente bamba, arrastões, horda de vagabundos sem camisa marolando nas calçadas e um visual de tirar o fôlego nos implorando para dar uma voltinha. Foi exatamente o que fiz.

Saí cedo da casa da amiga, que mora pertinho da enseada de Botafogo, para flanar mirando a Urca e o bondinho do Pão de Açúcar. Manhã de sol, dia perfeito. Devo ter saído realmente cedo, pois atravessei aquela pista de rolamento de várias faixas e alta velocidade com incrível facilidade. Aquilo ali é o eixão do Rio! Avenida sinistra que parece ter sido feita apenas para o pedestre virar tomate-ploft no asfalto.

Passeei, passeei, viajei, viajei, admirei, admirei, deixei o sol entrar nas minhas veias e dei o tempo necessário para que a minha amiga, carioca da gema e dorminhoca, acordasse e juntas pudéssemos tomar um café-da-manhã malemolente às 11 da manhã. Cara, eu estava com fome! E foi neste ponto que tudo se anuviou...

Quando tentei reatravessar o tal "eixo" do mal, quem disse que eu dava conta? Era um zunir de carros passando a 120 por hora... Dezenas, centenas, milhares... Não conseguia nem ver a cor dos automóveis de tão efêmeros... Rajadas de vento estapeavam meu rosto na beira do meio fio. Eu estava lá e tinha a certeza cabal de que iria morrer. "Eu vou atravessar isso aqui e vou morrer. Não tem chance. Vou deixar meu filho órfão".

"Quem mandou vir para o Rio e deixar o filho de dois anos com a avó? Castigo, tá vendo? Sua mãe desnaturada! Eu vou morrer e vou deixar minha amiga em maus lençóis, culpada por estar dormindo e não me ver fugir furtiva do apartamento. Eu vou morrer e pronto. Eu vou morrer". Era uma sensação absoluta e de puro pânico.

Ensaiava colocar o pé na pista e recuava, colocava e recuava... Não via ninguém a quem recorrer, a quem perguntar: "como atravesso isso aqui? Alguém atravessa isso aqui e sai ileso?" E colocava o meu pezinho e retrocedia, já me despedindo da vida.

De repente, um velhinho tocou o meu ombro: “Não faça isso, garota! Isso aqui é morte certa! A maior incidência de atropelamentos fatais do Rio de Janeiro”. Virei o rosto e lá estavam eles, três gentis senhores que eu não vi de onde surgiram, mas que se ofereceram a me levar até a passagem subterrânea que se escondia mais à frente.

Eles me acompanharam por todo o trajeto e, assim como chegaram, desapareceram. Não consigo lembrar se me despedi deles, se disse obrigado, se eles foram para a direita ou para esquerda. Baltazar, Melchior e Gaspar... Reis magos, anjos, espíritos de luz. Papai, vovô Zequinha e meu cunhado Jô...

Sei lá, pode ter sido qualquer ser desencarnado do bem, só sei que foi estranho e sublime. Aquele trio veio e foi embora como um sopro. Não consigo explicar. Apenas cheguei ao apartamento da minha amiga ainda em transe, sem conectar os pensamentos de forma coerente.

Foi minha primeira e única experiência com o além. Mas valeu por todas porque salvou meu filho de ter o mesmo destino triste que eu tive. Crescer sem pai ou sem mãe é muito duro. Obrigada, anjos!

Comentários

  1. Lu,
    Muito interessante o seu texto sobre a sua travessia das pistas em Botafogo/RJ.
    Quando foi que isso aconteceu (mês e ano)?

    Marcita

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  2. Emocionante!

    Débora Cronemberg

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  3. Legal demais saber que não fui a única a quase morrer nesse exato lugar! :)

    Andreza

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