Exercício de desapego

Escrevi esse texto em 2008, mas a atemporalidade de seu tema me fez republicá-lo, agora, no meu próprio blog. Espero que curtam!

Meu primogênito perdeu o primeiro dente-de-leite. Cheguei de viagem a tempo de testemunhar este rito de passagem tão importante e simbólico. Ou seja: meu filho já não é mais um beibe. Ele está dizendo tchauzinho à primeira infância. Logo, logo ele não será mais meu. Deixarei de ter o domínio completo sobre beijos e abraços apertados conquistados ou roubados. Como vou poder beliscar sua bundinha magra daqui a pouco? “Qualé, mãe, se manca, não sou mais criança”.

Que missão abissal a de ser mãe. Gerar 30 mil quilowatts de dedicação e cuidados diários para que outros caminhos os levem de nós. Para que outras mulheres, amigos, cidades e famílias desfrutem daquela plantinha que você cultivou com tanto zelo.

Eva não nasceu da costela de Adão. Nenhuma mulher é parte intrínseca de nenhum homem e vice-versa. A alegoria está equivocada. Os filhos, sim, são estes seres viscerais feitos de todas as nossas partes moles, molíssimas. Fígado, rins, pâncreas, coração, tripas...Eles brotam das nossas medulas ósseas, lá do tutano, do mocotó do sentimento que unge aquele ser com milhões de gotículas de amor.

Por que se exige da mãe tal dilaceramento? Às vezes gostaria de ser apenas uma mamífera plana. Uma égua que pare seus potros sem nenhum drama ou culpa e que, por isso mesmo, em pouco tempo cede o lugar de um para o outro, o outro, o outro...Não há acumulação na natureza. Só nós, mães da espécie humana, temos o arraigado hábito de nos apegar às crias para depois vê-las partir na chegada hora do voo solo. E aí pode rolar a tal síndrome do ninho vazio. Não acho que serei vítima dela, mas ainda assim me assusta pensar nos meus garotos medindo 1 metro e 90 e fazendo a barba.

Um dia destes observei uma cena densa: a mamãezinha dizia ao filho de uns três anos algo assim: “Você é a minha vida! Eu te amo! Você é a razão do meu viver!” A mesa do restaurante se inundou de calor. Achei aquela declaração de amor over demais para uma pobre criança indefesa. Jamais teria coragem de confessar isso aos meus filhos porque o ISSO é tão descomunal e desproporcional ao tamanho deles que poderia rui-los. Mas sei que é verdade. Não digo porque meu superego repressor me pede para ser menos derretida. Fico apenas no eu te amo. Acho que basta.

Mas tenho consciência de que são meus pequenos que me fazem tocar a roda d’água da vida. Mesmo quando o curso do riacho está secando, a corrente fraca, oscilante...São meus filhos que seguram a minha maré baixa. Os momentos em que a roda fica tão pesada que não roda. De que outro modo suportar a perda das duas mulheres mais importantes da minha vida em sincronia de tempo e doenças?

A essencialidade dos meus filhos se torna patente porque são eles que recarregam a minha energia com a graciosa inocência de suas carinhas curiosas e levam para longe, nem que sejam por alguns segundos, as agonias conjuntas de mamãe e dindinha. Sem os sorrisos, as perguntas desbaratadas e aquele cheirinho na nuca de suor infantil (essência divinal), não dava para navegar no leito vazante. E navegar sobre o caos é preciso, ainda que seja para presenciar seu filho deixar de ser seu e sua mãe lhe dizer adeus.

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