Domingos na praça

“O farol é o melhor caminho para acabar com o futuro de uma criança.
 Quem nunca contribuiu com isso, dando uma esmolinha
e depois acelerando o carro com a consciência aliviada?”
(Luiz Alfaya – diretor da ONG Rukha)

Sinto-me uma antropóloga em trabalho de campo. Uma observadora isenta, porém atenta, captando as nuances daquele pequeno microcosmo sem intervir em suas peculiaridades, mas aprendendo com elas. O que, sinceramente, não sei. Entretanto sinto que eles me dão algo sem nem se darem conta. Sem ao menos acreditar que possam ofertar algo a alguém, uma vez que são eles que pedem, rastejam e se expõem ao frio, ao sol e a rua para ganhar a vida.

Eles são o grupo de mendigos que adotaram as imediações da Igrejinha de Fátima para passar seus dias em família. Um eterno piquenique de migalhas. Acompanho esse grupo familiar, me parece que são dois núcleos, durante as minhas caminhadas de fim-de-semana, mas aposto que eles estão aportados ali nos dias úteis também.

Em uma das mulheres, vi a barriga crescer... crescer... crescer até estourar na forma de um bebê. “É mais uma boca dentro do barraco, mais um quilo de farinha do mesmo saco, para alimentar o novo João Ninguém. A cidade cresce junto com neném”. É impossível não recordar a pungente canção de Paulinho Moska e Lenine, mas na verdade eu passo é ouvindo rock pesado no Ipod que não me deixa escutar as conversas deles. Sou toda imagens.

Agora aquela mãe fuma. Deve ter fumado quando grávida. Fuma e amamenta, alimentando sua mais nova encrenca com fumaça e anemia. Outras crianças, meninos, todos machinhos, correm em volta. Eles são da outra fêmea, uma gorda que pariu quatro ou cinco. Não deve ter 40 anos, mas a aparência é de avó. O mais novinho, buxo protuberante, nariz escorrendo, cutuca um buraco na calçada com um graveto. A National Geographic adora mostrar estas cenas de chimpanzés fazendo uso de ferramentas. Como são inteligentes os nossos primos de primeiro grau!

E o irmão dele prova que assim como são as pessoas são as criaturas, nem que sejam breves estes momentos. Com tampinhas de garrafa PET ele fez um jogo de damas. Pacientemente, risca o tabuleiro no banco do espaço público. Com um pedaço de pedra desenha os quadradinhos. Depois espalha as peças.

Às vezes o capto em pose de “O Pensador”, escolhendo o próximo movimento. Já flagrei o guri jogando com outro garoto, provavelmente o irmão logo abaixo dele na escadinha de Zé Ninguéns. E numa outra incursão antropológica, vi os dois concentrados nas tampinhas coloridas, vigiados por um terceiro, que, sentado em caixote de carregar frutas, assistia à e-mo-ci-o-nan-te partida.

Essas cenas são instigantes, pois atestam o óbvio: que eles são apenas meninos. Meninos que poderiam ser e não vão ser. Meninos que têm inteligência, curiosidade e potencial como os filhos dos apartamentos da Asa Sul. Eles não são estatísticas, não são entulhos, não são problemas sociais. São meninos que deveriam estar na escola. Quem será que ensinou aquele guri a jogar damas? Como pode ele ter interesse por um jogo "intelectual" vivendo exposto na vitrine da miséria?

Hoje pela manhã assistia a um documentário sobre Brigitte Bardot e ela dizia em sua estonteante – ainda – beleza senil: “o mais infeliz e sozinho homem do mundo não é tão miserável quanto um animal, porque o homem não vai parar num abatedouro”. Simplista Brigitte... Do Brasil, ela deve guardar na memória apenas o branco da areia de Búzios.

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