"A fraternidade é vermelha"

Ser jornalista é às vezes como ouvir a nona sinfonia de Beethoven ou reger com batuta imaginária o concerto para trompa e orquestra de Mozart, ou seja: emocionante. A profissão pode colocar a gente em situações ímpares que marcam para sempre.

Não estou aqui fazendo apologia do jornalismo, pois nem sou uma típica repórter-xereta. Não tenho perfil e nem sou política o bastante para fluir bem em ambientes de poder. Não sou, resumindo, engajada na vida jornalística de corpo e alma, mas preciso reconhecer que, se não fosse minha carteira internacional de jornalista, não teria entrado lá no “ground zero”. Ponto fulcral (chique essa palavra, hein) do desabamento do World Trade Center. Recordam?

Eu estava lá. E cheguei muito perto. Tudo cercado pelo exército norte-americano. Ninguém entrava além das equipes de resgate e das maiores TVs, jornais e rádios do mundo. Mas a Lucianinha entrou com sua carteira de jornalista sem pertencer aos poderosos. Entrei em nome da profissão e deu até um toque a mais de irrealidade naquela bizarra cena de cinema catástrofe. Os escombros e eu, o pó e eu, os cães farejadores e eu, os voluntários e eu, o sangue e eu... Parecia um set de filmagem apavorante. Página histórica e triste do caminhar torto do mundo.

E tantos anos depois, outra vez o jornalismo me colocou de frente para um momento singular. Não tenho muitas oportunidades de fazer pautas externas, sendo uma jornalista de assessoria de imprensa. Não vivo o glamour das viagens internacionais. No máximo, acompanhei alguns ministros-presidentes em eventos pelo país. Entretanto, ontem participei de uma história que estava a zil quilômetros dos holofotes, mas nem por isso deixou de ser fantástica. E não por ser trágica, e sim humana em sua melhor amostra.

Os servidores do STJ adotaram as 249 cartinhas enviadas ao Papai Noel dos Correios pelos alunos da Escola Fundamental de Vargem Bonita. A localidade fica a poucos quilômetros do Plano Piloto, mas parece uma comunidade dos cafundós do Judas. É só chegar ali para se ter a certeza de que a desigualdade socioeconômica do Brasil é aviltante.

Geanne recebendo a casinha de boneca que pediu
 A montanha de presentes dividia o espaço do pequeno pátio da escola pública com os meninos pobres sentadinhos, esperando com avidez o momento de avançar naqueles pacotes. Assim diziam seus olhos sedentos de sonhos e alegrias.

A animação da criançada alcançava altos decibéis, pois era um dia vermelho, cor do coração e também do Papai Noel. Chegara a hora de transformar pequenas vidas já marcadas por duras provas, pela sensação maravilhosa dos desejos realizados. Agitada de expectativa, a gurizada aguardava o ápice: a chegada do Bom Velhinho.

1º ano A na fila para ganhar presentes
Quando o morador do Polo Norte entrou na escola, uma chuva de papel picado colorido caiu do céu. Era a magia do Natal tocando o peito dos alunos, professores e convidados. Meninos e meninas em fila para receber os desejos comprados pelos doadores, porém sem preço para aqueles serzinhos em uniformes encardidos.

Vítor Henrique me conta o que pediu ao Bom Velhinho
 Ao contrário do que seus olhos diziam, eles não rasgavam loucamente os pacotes. Não conseguiam crer que aqueles embrulhos tinham endereço certo. “Pode abrir”, encorajava. De repente um, dois, três...Os papéis foram caindo no chão e as faces quase todas tristes e sofridas tornaram-se novamente infantis, leves e felizes com suas bolas, bicicletas, bonecas, skates, carrinhos...

Nesses minutos, repito, ser jornalista é não escutar e, ainda assim, compor "Jesus, alegria dos Homens".

Comentários

  1. Querida Luzinha,

    Como é gratificante unir trabalho e sentimento, trabalho e humanidade, trabalho e solidariedade...já tem a sua matéria sobre isso? Gostaria de lê-la.
    Ando pensando em visitar uma creche, levar brinquedos,(Bruna ama crianças),sair um pouco do meu "umbiguismo"...rs...
    Te encaminhei um artigo que achei fantástico para escritores... depois me conte.
    Beijos!
    Patty

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  2. Oi Patty,

    mais uma vez, obrigada pelo comentário. Eu não sou muito de falar da minha profissão com gosto, pois não me sinto parte dessa fauna neurastênica a qual pertence meus coleguinhas.

    Mas me deu vontade de escrever o que escrevi porque ontem eu senti isso mesmo. Uma sensação rara e incrível de trabalhar com o que eu trabalho.

    Beijocas,

    Lulupisces

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  3. Oi Luciana.

    O post de hoje foi mais que uma boa leitura. Foi uma sacudida necessária e merecida. E também uma inspiração para uma ação de envolvimento com os clientes - te conto os detalhes numa outra oportunidade.

    E pra mim vale o que sua amiga Patty disse: também quero ler a matéria. Se puder, me mande por e.mail.

    Abraços panetônicos.

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  4. Belo "trabalho", parabéns...inveja boa...fiquei muito afim de estar em seu lugar e bateu uma reflexão :Por que não? como posso ajudar o próximo?como cuidar da dor do outro? Fica em paz, beijo fraterno e vermelho...Namastê!
    Cynthia

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  5. De todos teus textos que li, esse foi o melhor. Porque mais que teoria filosofal foi práxis viva, encarnada, ensagrada em tuas veias.

    Deus te abençoe e continue fazendo atos dessa natureza.A mulher e a jornalista serão grandemente abençoadas.

    Bjus,
    Davide

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  6. Duro né?

    Que bom que lá as crianças ainda puderam pedir brinquedos ao Papai Noel. Como você sabe na comunidade da Vila DNOCS do Sobradinho, a miséria é tanta que a criança pediu ao bom velhinho material escolar. Em nome destas crianças agradeço a sua ajuda e a de todas as outras pessoas que estão colaborando. Abraços

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  7. É isso aí, Lulu! Que bom ter oportunidade de vivenciar experiências como essa. E ouvir músicas como essa, ainda que em nossos corações!! um beijo! Débora

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