Fado de uma nota só

O que sobra das gemas dos pastéis de Belém se transforma...
Acho que vou passar pelo menos uma década sem comer bacalhau e azeitonas. Sei que existem brasileiros que nunca experimentaram bacalhau ou azeitonas e soa insensível abrir um texto assim, mas para falar da comida de Portugal a gente precisa ser hiperbólico, pois a gastronomia da terrinha não é para paladares delicados. Ainda bem que nós, herdeiros desses costumes alimentícios, inovamo-os e os diversificamos com as influências africanas, indígenas e euroasiáticas, o que resultou numa das biodiversidades culinárias mais ricas do planeta.

Por isso é complicado para os brasileiros que estejam em qualquer parte do mundo, não reclamar, depois de algum tempo, do quase sempre reduzido leque de comidas locais. Claudia, a amiga austríaca, sempre ficou intrigada com a minha constante choramingação de saudade da comida brasileira. Isso foi nos Estados Unidos, um país que é tão grande quanto o Brasil, mas que não é páreo para nós em termos de riqueza de cardápio.

Se fôssemos passar mais de um ano a base de hot dogs, hamburgers, panquecas, a insuportável torta de abóbora e o peru sem graça do Thanks Giving, seria de dar um tiro na cabeça. Sorte que sempre há os restaurantes estrangeiros para salvar as saudosas almas brasileiras da fome. Assim aconteceu com outra amiga minha, gourmet, excelente cozinheira e acostumada a provar e gostar dos mais exóticos pratos. Foi de férias para o México e detestou o sabor típico de lá. Após várias frustrações, fugiu para os restaurantes de sushi.

A reação em Portugal foi semelhante, e olha que só estamos falando de 15 dias. Para alegria minha, Claudia e o marido toparam sair de Munique para nos encontrar em Lisboa. E, assim, a nossa amizade vai resistindo ao tempo e à distância hemisférica. E ali, mais uma vez, ela disparou em inglês perfeito: “Vocês brasileiros têm alguma questão mal resolvida com a comida”. Mal resolvida não, minha amiga, muito bem resolvida. Somos felizardos por comer bem em nosso próprio território. Vá num self service brasileiro e veja com o seus olhos: é variedade para agradar “de mamando a caducando”, como dizia mamis que está no céu.

Plaquinha de azulejo típica de Coimbra
Claudia não conseguia entender Isabel, a amiga brasileira que visitei, e eu, reclamando do cardápio de uma nota só dos portugueses: bacalhau às natas, bacalhau nisso, bacalhau naquilo, bacalhau afundado no azeite, azeitonas, sardinha assada de Setúbal, cabidela de galinha imersa num sangue gorduroso, as indefectíveis batatas, pastéis de Belém e... basicamente acabaram-se os pontos “altos” da gastronomia lusa.

Mas o que esperar de um país de território minúsculo? É como se o Brasil fosse apenas Minas Gerais e a gente passasse a comer todos os dias, no almoço e no jantar, tutu de feijão, carne de porco e frango com ora pronobis. Deliciosos quitutes, não nego, mas a curto prazo. Não dá pra transformar essa tijolada em comida do dia a dia. Já pensou se o Brasil fosse apenas o Rio Grande do Sul e tudo o que nos restasse fosse churrasco com sagu e galeto com polenta? Haja epocler!

Por isso o arroz com feijão é imbatível. Uma dupla que cai bem para o corpo e para o espírito. Não pesa, não faz seu fígado gritar pedindo socorro depois de uma semana. Claudia não tem mesmo como compreender nossos maus costumes. Na Alemanha, que também não é tão grande e nem tão misturada, o que rola é variações de salsicha, bife de vitela, chucrutes e, voilá, batatas.

Cabidela de galinha regada a vinho da Casa

Recordo agora o marido colombiano de uma amiga que disse que os brasileiros inventam qualquer desculpa para se reunir em torno da comida. Ele afirmava que na Colômbia o assunto não era levado muito a serio, sendo a comida apenas mais um item do kit de sobrevivência. Molly, a única americana com quem estabeleci um relacionamento afetuoso, também me confessou algo na mesma linha sobre os hábitos ianques. Comer é só comer, e daí?

E daí que eu agradeço o nosso banquete diário com frutas miles, verduras e legumes diversos, fartura de jeitos de se preparar os alimentos e pitadas de tempero diferenciadas. Um turista estrangeiro que vier ao Brasil pode passar o mês inteirinho sem repetir uma comida nacional sequer. Não precisa apelar para restaurante japonês, tailandês ou russo. Nossa culinária é colorida, divertida e democrática, oferecendo possibilidades para todos os gostos.

Em Portugal, já não aguentava mais abrir o cardápio dos restaurantes e ler mais do mesmo. Sem contar a bat entrada: pães, manteiga, patê de sardinha, patê de atum e, adivinhem, azeitonas. Tenho de fazer uma ressalva para o maravilhoso mini queijo que eles servem. A perfeita mescla de leite de vaca, ovelha e cabra. Um primor! Aliás, os laticínios portugueses são de lamber os beiços.

Tradicional casa de pães no centro de Coimbra
Depois de uma semana comendo o famoso bacalhau português tive que concordar com a Isabel, que está há um ano em Lisboa fazendo mestrado: desista! Ela correu para um vegetariano. Eu corri para um chinês e um indiano. Também comi um espaguete como se fosse O manjar dos deuses.

Que me perdoem os puristas, mas o nosso bacalhau, iguaria de datas festivas, tem muito mais élan. Porque chique é poder escolher entre feijão preto, carioca ou fradinho com arroz e ovo frito; carne moída com abóbora; bife de carne boa com farofa molhadinha, pamonha, tapioca e bobó de camarão. Só pra começar. Isso sim é menu Michelin.

Comentários

  1. Eu também só dou 10 pra nossa comida. Agora, um conhecido meu que você vai conhecer em breve diz que comida é substituto pra amor, e nós brasileiros, os italianos, os portugueses, os latinos, em geral (e interessante os seus amigos nórdicos fazerem os comentários estupefatos sobre nossa relação com a comida, e justo eles, que achamos que são tão frios), temos esse hábito de fazer da alimentação um ritual de amor, de preenchimento, uma relação íntima mesmo. Enfim, pra resumir: com toda essa nossa variedade brasileira, será que somos a) promíscuos; b) volúveis; c) insaciáveis; d) mais profundamente mal resolvidos do que sugeriu a Claudia; e) mais livres do que sonhava nossa Princesa Isabel. A refletir.

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  2. Nossa Má, taí uma reflexão complexa:). E como fica a minha obsessão por chocolate nessa história? Sim, total substituição do amor. No no meu caso, maternal. Minha mãe e chocolate são sinônimos desde que me entendo por gente. Ela me serviu, literalmente, esse vício numa embalagem dourada de alpino. Deve ser por isso que tenho comido mais chocolates do que nunca. Como nunca mais vou ganhar chocolates da minha mãezinha, eu mesma compro e revivo o ritual.

    Beijim e obrigadim por comentar meus textos antigos!!! Amor,

    Loo

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