Campo de Estrelas


“Para onde eu vou a vida é curva e não é linha”
Pedro Abrunhosa, cantor e compositor português


A rua 25 de março às vésperas do Natal. Essa é Santiago de Compostela que, junto com Roma e Jerusalém, forma a tríade mais visitada do mundo pelos cristãos.

Durante o dia, o formigueiro humano é bastante eclético. Ponto final do místico caminho de Santiago que, de fato, como tudo na vida, são muitos, a Catedral do Apóstolo é sem igual. A única que não devia saber disso era eu, a turista acidental que pretendia encontrar um portal com os dizeres: “aqui começa o caminho de Compostela”. Se tudo na existência fosse fácil, viver não seria mágico. E tome mico!

Assim, depois de aprender a primeira lição espiritual da cidade, prostrei- me diante da construção medieval mais importante da Espanha. Porque Santiago de Compostela fica na Galícia, que é espanhola, mas com um pouco de birra. Afinal, os galegos foram obrigados a silenciar sua própria língua durante 300 anos. O castelhano perdurou como idioma oficial até a década de 70, quando o galego voltou a ser ensinado nas escolas.

Lulupisces e a Catedral de Santiago ao fundo
Agora as duas formas de expressão convivem pacíficamente nas placas de sinalização e nos letreiros das lojas. Só que, para mim, rola alguma crise de identidade por ali latejando por baixo dos nossos pés. Mas, deixando essa teoria da conspiração pra lá, o que o visitante lê pelas ruelas sinuosas do centro histórico é uma mistura estranha de Espanhol e Português. Desafio você a pronunciar o nome de uma cidade: Sanxenxo. Não pergunte para mim, pois sigo no escuro. Entendi apenas que, no galego, a letra x substitui o j ou g em algumas palavras.

E a complexidade de Santiago de Compostela não para na sua dualidade linguística. O lugar é sagrado por excelência. Cultos pagãos celtas, bruxas e magias resistem ao lado da figura do apóstolo. À noite, quando as ruas acalmam e a lua + a iluminação fantasmagórica dos monumentos nos presenteiam com uma cidade fora do comum, a gente sente a espiritualidade quase palpável a nos abraçar.

Catedral de Santiago de Compostela: deslumbrante

 A cada piscar de olhos, um detalhe que ainda não havia sido notado. A cada segundo, um clarão divino. A catedral pode ser clicada em zilhões de ângulos diferentes, porém nunca será captada em sua magnificência. Santiago e sua aura difusa brincam com a nossa noção de real e imaginário. Um lance tipo yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay.

A vilazinha nos coloca numa elucubração da Física, na qual experimentamos uma dobra espaço-tempo. A gente vem por uma rua e, sem mais nem menos, cai em outra. Os cantantes das esquinas estão ali e, de repente, já estão acolá, debaixo daquele arco que você nem tinha ideia de que existia. Será que Lewis Carol esteve em Santiago de Compostela antes de escrever Alice no País das Maravilhas?

Tocantes e cantantes em toda parte

Entretanto o que mais comove é presenciar a chegada dos peregrinos de verdade. Daqueles em roupas rotas, de rostos marcados pelo sol e vento. Dos que mancam e cheiram mal de tanto expurgar suas contas em quilômetros de caminhada. Todos realizados por alcançar o interior da catedral com sua acolhedora proteção.

Por isso, estando em Santiago (nome que poderia ter dado ao meu filho), sente no chão da Praza dos Obradoiros e entre em sintonia com o que está além do entendimento racional. Ou somente compartilhe da missa com o olhar fixo no altar da catedral. Tenho a certeza de que Compostela, corruptela para campo de estrelas, vai fazer morada definitiva no seu coração.

Praza dos Obradoiros




Comentários

  1. Que lindo, Lu!!! "Paixonei" mais ainda!!! Valeu por compartilhar suas impressões com tanta emoção, mais uma vez! :)

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  2. Amei o seu texto! Escrito com encantamento e ternura, além de informações super interessantes. Fica na minha mente tua frase "Se tudo na existência fosse fácil, viver não seria mágico", pois é assim mesmo que acontece o mistério. Ah, Sanxexo pronuncia meio como xuxa (risos). Um beijo e obrigada pela companhia que sempre me aporta algo de bom.

    Kenia de Aguiar Ribeiro

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